Fórum
Mundial da Água e FAMA: especialistas explicam propostas
dos 2 eventos no DF
O G1 ouviu diretores da Adasa
e do Movimento dos Atingidos por Barragens. Representantes
explicam pontos comuns no debate e principais conflitos.
Por Marília Marques,
G1 DF - 18/03/2018 09h01 - A partir deste domingo (18) até
sexta-feira (23), Brasília vai sediar dois dos principais
eventos do mundo sobre a gestão, uso e direito à
água. Pela primeira vez no Hemisfério Sul,
o Fórum Mundial da Água (FMA) deve atrair
a atenção de governos e grandes corporações
para os debates que acontecem na capital federal.
Já o Fórum
Alternativo Mundial (FAMA) espera reunir, ao mesmo tempo,
movimentos sociais, sindicatos e ONGs que defendem a gratuidade
desse bem público. Ao todo, serão mais de
170 países representados nos eventos.
Na tentativa de esclarecer
as propostas dos encontros e, assim, explicar o porquê
de fóruns simultâneos para debater um mesmo
tema, o G1 ouviu especialistas de cada um dos eventos. Para
eles foram feitas as mesmas perguntas, afim de entender
quais os principais pontos de divergência nesse debate.
A entrevista também
se propõe a ouvir possíveis opiniões
comuns entre os dois grupos quando o assunto é a
preservação da água, e quais as soluções
práticas para garantir o acesso a recursos hídricos
de qualidade para todos os povos do planeta.
Quem são os especialistas
Diretor da Agência Reguladora de Águas (Adasa),
o engenheiro agrícola Jorge Werneck é mestre
em irrigação e doutor em tecnologia ambiental
e recursos hídricos pela Universidade de Brasília
(UNB).
O representante do Fórum
Mundial da Água está envolvido há pelo
menos três anos no processo que debateu e organizou
o evento em Brasília. Ao todo, foram mais de 150
mil pessoas ouvidas, em todo o mundo, para que fossem, então,
escolhidos os seis principais temas que norteiam as mesas
de discussão do fórum.
O representante do FAMA
Gilberto Cervinski também é engenheiro agrônomo,
além de especialista em economia política
e "energia e sociedade no capitalismo". Atua como
coordenador nacional do Movimento de Atingidos por Barragens
(MAB), uma organização presente em, pelo menos,
15 estados brasileiros.
Criado na década
de 1970, o MAB tem promovido ações para garantir,
especialmente, o direito de ribeirinhos, quilombolas e agricultores
que tiveram que deixar suas terras devido a construção
de usinas hidrelétricas.
Dois eventos e um tema.
Veja principais pontos da entrevista:
Entenda o Fórum Mundial da Água e o Fórum
Alternativo da Água
Principais temas e pontos de debate
Pontos de convergência entre os dois fóruns
Financiamento e privatização da água
Soluções práticas para o problema da
água no mundo
Crise hídrica no DF
Como perpetuar os bons hábitos de economia de água
Legado dos fóruns para Brasília e para o mundo
1. Entenda os fóruns
G1 - O que são e quais as principais propostas do
FAMA e do Fórum Mundial da Água?
Gilberto Cervinski (FAMA)
– O Fórum Alternativo estabelece propostas
de oposição ao Fórum Mundial. Pretendemos
mostrar para o povo todas as estratégias de privatização
da água que está presente em rios, nascentes,
lagos e todas as 27 regiões aquíferas do Brasil.
Nós vamos debater
o atual momento, em que a disputa pela água acontece
no mesmo contexto da crise do Capital. A água não
pode ter dono, ela é do povo e deve servir ao povo.
A defendemos como direito e não mercadoria.
Jorge Werneck (FMA) - O Fórum Mundial é uma
plataforma de debate a respeito do tema água, que
busca, por meio de uma participação aberta
e democrática, promover o debate para influenciar
os processos decisórios na área de recursos
hídricos.
O Conselho Mundial da Água
[organizador do fórum] é composto pela sociedade
civil, pelo governo, técnicos e organismos da Unesco...
O bom é que tenha diversidade mesmo. Posso te garantir
que na grade temática, que é a espinha dorsal
do fórum, os temas e sessões foram construídos
de forma democrática, tudo isso foi feito com a participação
de cerca de 150 mil pessoas do mundo inteiro.
2. Temas principais
G1 - O que podemos destacar como os principais temas e questões
debatidos nesta edição do FAMA e do Fórum
em Brasília?
Gilberto – A atual
disputa pela água na América Latina. Estamos
fazendo esta edição do fórum para mostrar
que a água está sendo disputada pelas corporações,
e o povo corre o risco de ficar sem ela.
Denfedemos a água
como direto do povo, queremos que a universalizem, e que
não a estabeleçam como mercadoria. Queremos
que o povo tenha direito à agua e que o lucro das
empresas seja investido na melhoria dos sistema. Precisamos
de tarifas reais e não especulativas e abusivas.
Essa é nossa pauta no Fama.
Werneck - Fizemos todo um
processo de debate para definição dos principais
temas que deveriam ser discutidos no fórum. Após
as reuniões pelo mundo inteiro, definiram-se seis
principais temas: clima, segurança hídrica
e mudanças climáticas, pessoas, desenvovlimento
urbano, ecossistemas – que evolvem a qualidade da
água e biodiversidade – e financiamento para
segurança hídrica.
Além dos temas transversais:
compartilhamento – tema principal do fórum
–, capacitação e governança,
que vai traçar uma agenda de desenvolvimento para
2020 até 2030.
3. Pontos de convergência?
G1 - Serão dois grandes eventos acontecendo simultaneamente
na mesma região, para debater o mesmo tema: a água.
Podemos esperar algum ponto de convergência entre
as decisões e declarações finais?
Gilberto - Não há
convergência porque a única questão
que move eles [Fórum Mundial] é o lucro. Só
querem atuar em áreas possíveis de extrair
lucratividade.
Onde se privatiza água,
com o passar dos anos passa a se estabelecer prioridade
nesses dividendos e, sendo assim, não há investimento
de melhorias de sistema, por exemplo, para evitar a perda
de água. Não têm como haver pontos comuns
nesse debate.
Werneck - Não há visão de confrotamento,
tanto o fórum quanto o FAMA querem a mesma coisa.
Todos entendem a água como direito humano. Isso é
ponto pacífico.
O que a gente busca é
como implementar esse tipo de coisa. Eles [FAMA] defendem
que o Estado deve assumir esse papel, mas outros grupos
defendem que o privado deve aparecer de forma mais intensiva
para que as coisas funcionem. O importante é levar
água para todas as pessoas.
4. Privatização
G1 - O lema do Fórum Mundial esse ano é "compartilhando
água". Seria a discussão sobre financiamento
e privatização da água, o principal
ponto de divergência entre as duas edições?
Gilberto - Sim. Água
não é mercadoria, é um direito dos
povos, é do povo e por ele deve ser controlada. Quando
se estabelece a privatização, é como
se tornasse uma unidade de terra. Se ocorrer a privatização,
uma empresa poderá estabelecer uma cerca no lago,
por exemplo, e proibir que alguém acesse essa água.
Também poderá
estabelecer um preço por metro cúbico [de
água] e, aí, a população vai
ter que pagar esse preço para alguém que ache
que é dono do "território". Não
seria pagar pelo custo do serviço.
Werneck - A grande diferença
é que o Fama já chega com uma posição
definida a respeito do que eles entendem ser a única
solução para resolver os problemas. Não
é divergência, mas é uma parcela da
sociedade que se reúne, pessoas não inseridas
no processo que se juntam para debater o tema.
Teremos sim várias
sessões sobre modelos de saneamento e sobre financiamento,
porque só dizer que todo mundo precisa de água,
não resolve o problema, mas precisa dizer como resolver
isso aí. O objetivo é debater, levantar e
sistematizar as informações para que cada
um utilize as experiências da melhor forma.
5. Soluções
práticas
G1 - Quais as principais soluções práticas
que o evento propõe para o problema do mau uso e
escassez de água no país e no mundo?
Gilberto - Não é
simples ter uma regra geral. O Nordeste é a região
onde tem a menor precipitação do país.
Mas lá, o povo passou a controlar a água,
e não são empresários que controlam
com carro-pipa. Na região seria um tipo de iniciativa,
que tem que ser ampliada para que leve o acesso à
água para toda população.
No caso do saneamento, também
precisa ser universalizado para toda população.
As pessoas precisam de ideias práticas para levar
água de qualidade para beber, mas com uma tarifa
justa.
Werneck - Será, principalmente,
a experiência que nós ganhamos nos últimos
anos com a alocação negociada envolvendo usuários
das bacias do DF. Nesses últimos anos o sistema evoluiu
bastante. Temos programas como o produtor de água
do Pipiripau, que contou com o envolvimento de 150 produtores
em um universo de 450 pessoas.
Outro exemplo é o
processo de despoluição do Lago Paranoá.
O lago era um lugar fedorento, degradado, que depois de
limpo virou um grande cartão postal para cidade.
É um caso de sucesso, exemplo pro mundo, de um lago
despoluído que se tornou útil para o abastecimento
urbano. Cases como esses do DF serão apresentados
para o mundo.
6. Crise hídrica
no DF
G1 - No caso do DF, mesmo com o racionamento e mais conscientização
sobre o uso da água, o consumo médio da população
ainda é acima do recomendado pela Organização
Mundial de Saúde. Em que estamos errando quando o
assunto é crise hídrica, escassez e preservação
desse bem?
Gilberto - Prefiro não
responder sobre o DF porque não tenho vivência
do racionamento daqui. O que posso falar é sobre
o que aconteceu em São Paulo.
Werneck - Esses limites
são médias. Tem que ser considerado porque
dependem de classe, tipo de uso e de ambiente. Não
dá para comparar o Brasil, o DF, com lugares mais
frios, por exemplo.
No Distrito Federal, em
pouco tempo chegamos aos 3 milhões de habitantes,
e aqui, os rios ainda são pequenos, é um berço...
Quando se pega dados da ONU [Organização das
Nações Unidas], vê-se que o DF tem altíssimo
risco de conflitos pelo uso da água. Somado a isso
tem o fato da população do DF continuar crescendo,
e de nos últimos três anos termos enfrentado
problemas com a chuva. Aí vieram a crise e o conflito,
mas estamos conseguindo superar, poderia ter sido pior.
Vale lembrar que o consumo
de água por habitante do DF caiu para um valor considerável.
7. Hábitos de consumo
G1 - Às vezes notamos que os hábitos de consumo
de água da população mudam durante
o período de crise, como foi em São Paulo.
Mas, depois que a restrição passa, volta-se
a consumir da mesma forma. Qual a recomendação
para que bons hábitos se perpetuem?
Gilberto - Normalmente,
durante racionamentos, aumenta-se a tarifa de água,
o número de ligações e até demissão
de trabalhadores. Não se investe nada em ampliação
de reservatórios, por exemplo, já que aumentou
a demanda por água.
Não investir leva
a um colapso. Os governos têm que entender que é
preciso priorizar o sistema, e não aos acionistas.
Werneck - O DF passa pela primeira vez por uma situação
dessa. Daqui pra frente a gente pretende continuar com as
campanhas. O fórum também é importante
nesse processo, assim como o envolvimento das crianças.
Depois da crise, as pessoas
entendem o que é passar por isso, pensam no que seriam
dois dias de racionamento... Ninguém gosta e nem
quer crise, mas foi algo que gerou pontos positivos e mais
responsabilidade sobre o uso racional da água.
8. Legado dos fóruns
G1 - Por fim, qual seria o principal legado dos fóruns
para Brasília e para o mundo?
Gilberto - O legado é
chamar a atenção para necessidade do povo
de lutar para resolver o problema da água. Porque
se depender do governo, o dinheiro público vai ser
canalizado para empresários.
Werneck - Em um nível
mais local, esperamos ter uma geração um pouco
mais consciente e preocupada com a questão da água.
Queremos que todas as vozes sejam ouvidas. O Estado sozinho
talvez não consiga resolver todas os problemas, por
isso esperamos que o fórum nos gere uma base, tanto
de pessoas, como jurídica, com política, para
evolução na resolução dos problemas.
Do G1