Como
o deserto do Saara participa do regime de chuvas da Amazônia,
a 5 mil km de distância
Cientistas explicam como
a poeira vinda do deserto do norte da África influencia
na formação de nuvens da floresta amazônica.
Por BBC - 19/03/2018 18h10
- Pouco mais de 5,3 mil km e o Oceano Atlântico separam
as cidades de Manaus (AM) e Nouakchott, a capital da Mauritânia,
no deserto do Saara. Apesar da distância, o deserto
do norte da África e a floresta amazônica têm
uma relação mais estreita do que senso comum
nos leva a acreditar.
Tão inesperado quanto
esta ligação é o fato de ser o deserto
que beneficia a mata, e não o contrário -
sendo responsável pela maior parte das chuvas torrenciais
que caem sobre a região, mantendo sua exuberância
e biodiversidade. Além de enviar toneladas de nutrientes
para sua vegetação, como o fósforo.
Os "núcleos
de condensação" - a parte da nuvem em
que o vapor de água se condensa - são formados,
entre outros elementos, por partículas em suspensão
no ar - poeira, por exemplo. No caso da floresta amazônica,
uma parcela desses aerossóis é proveniente
do Saara.
"Este fenômeno
de transporte ocorre principalmente na parte norte da Amazônia,
mas já foi registrado também na área
central da região, como, por exemplo, ao sul de Manaus",
explica o físico Paulo Artaxo, do Instituto de Física
da Universidade de São Paulo (IF-USP).
Ele é um dos integrantes
de uma equipe de pesquisadores do Brasil, dos Estados Unidos
e da Alemanha que vem desenvolvendo, há uma década,
um trabalho que levou à descoberta de que a poeira
do deserto ajuda a formar nuvens sobre a Amazônia
Central, onde se localiza Manaus, que são responsáveis
por cerca de 80% das chuvas que caem na região.
Mas como o deserto cria
precipitações a milhares de quilômetros
de distância?
Segundo Artaxo, o fenômeno
ocorre todos os anos. Ele começa com as tempestades
no Saara, que levantam toneladas de poeira e areia. Esse
material é transportado de lá, por cima do
Oceano Atlântico, até a floresta amazônica,
numa distância mínima de pelo menos 5 mil km
- entre a parte mais ocidental do deserto e Manaus. "Isso
ocorre de fevereiro a maio, pois, nesta época, a
chamada Zona de Convergência Intertropical (ITCZ,
na sigla em inglês), fica ao sul de Manaus, favorecendo
o transporte de massas de ar do hemisfério Norte
para a Amazônia Central", explica Artaxo.
Ele diz que, para que haja chuva, são necessários
três ingredientes básicos: vapor de água,
condições termodinâmicas ideais e as
partículas que servirão de meio para que o
vapor possa se condensar. "Os grãos de poeira
do Saara, que também podem ser chamados de aerossóis,
operam como uma destas partículas em que o vapor
de água se condensa", explica Artaxo, mencionando
a hipótese mais aceita para a explicação
do fenômeno.
"Ou seja, eles atuam
como núcleos de condensação de gelo,
fazendo com que gotas líquidas, ao atingirem altas
altitudes e temperaturas menores que -10 ºC, congelem
e formem gotas de gelo, que são eficientes no processo
de formação de chuva na Amazônia."
Artaxo conta que as medidas
da concentração de partículas do Saara
foram feitas na Amazon Tall Tower Observatory (ATTO), ou
Torre Alta de Observação da Amazônia,
com 325 metros altura, o equivalente a um prédio
de 80 andares. Erguida na reserva ambiental do Uatumã,
no município de São Sebastião do Uatumã,
a cerca de 180 km de Manaus, é a maior torre de monitoramento
ambiental e atmosférico do mundo. O objetivo dela
é coletar dados sobre a interação entre
a vegetação e atmosfera.
Teste químico
Para testar sua hipótese, os pesquisadores realizaram
experimentos em laboratório. Parte das partículas
coletadas na torre ATTO foram injetadas em uma câmara,
na qual é possível simular a formação
das nuvens convectivas - nuvens com grandes altitudes verticais,
que podem chegar a 15 km da base ao topo, responsáveis
chuvas torrenciais e rápidas.
Segundo Artaxo, essa câmara
reproduz as condições da atmosfera a até
18 km acima do solo, onde prevalecem as baixas pressões
e temperaturas - de até -70 ºC. Na natureza,
é num ambiente parecido que se formam as nuvens convectivas.
A certeza de que a poeira encontrada no local vem do Saara
e não de um terreno próximo à torre
é dada pela sua composição química,
mais especificamente, pela presença e proporção
de alguns elementos, como alumínio, manganês,
ferro e silício. De acordo com Artaxo, a quantidade
desses elementos nas partículas coletadas na Amazônia
é igual a encontrada na poeira do Saara. "Além
disso, há a correlação entre a presença
desses aerossóis e o movimento das massas de ar",
diz. "Isso prova que eles vieram mesmo do deserto africano."
Os cientistas ainda não
têm 100% de certeza sobre o mecanismo pelo qual os
aerossóis do Saara ajudam a formar as nuvens e, por
consequência, as chuvas que caem torrencialmente na
região. A hipótese mais provável é
que o ferro, presente na poeira do deserto, pode funcionar
como um suporte, sobre o qual o vapor d'água se condensa,
formando núcleos de gelo, que depois se transformam
em gotas de chuva.
Fertilizante natural
Não são apenas simples grãos de poeira,
entretanto, que o Saara manda para a Amazônia.
Em 2015, a Nasa, a agência
espacial americana, divulgou um estudo segundo o qual todos
os anos o deserto envia, junto com o pó, 22 mil toneladas
de fósforo, nutriente encontrado em fertilizantes
comerciais e essencial para o crescimento da floresta. É
quase a mesma quantidade que a mata produz, com a decomposição
das árvores caídas e, em seguida, perde com
as chuvas e inundações.
Segundo o levantamento da
Nasa, todos os anos 182 milhões de toneladas de poeira
- mais ou menos o equivalente a 690 mil de caminhões
de areia - saem do Saara para as Américas do Sul
e Central. Desse total, cerca de 28 milhões de toneladas
- ou 105 mil caminhões - caem na Bacia Amazônica,
e, junto com elas, o fósforo.
A poeira mais rica em fósforo vem da depressão
de Bodélé, no Chade, que é um antigo
leito de lago, hoje seco.
Devido a sua geografia,
o local é atingido por constantes e gigantescas tempestades,
que levantam a areia, que depois é transportado para
o outro lado do Oceano Atlântico. A descoberta é
parte de uma pesquisa maior para compreender o papel da
poeira e dos aerossóis no meio ambiente, no clima
local e global.
Os pesquisadores da equipe
da qual Artaxo faz parte estão agora empenhados em
descobrir se o aquecimento global pode interferir no fenômeno
do transporte de poeira do Saara para a Amazônia e,
consequentemente, na formação e no volume
de chuva na região da floresta brasileira.
"Um dos efeitos do
aquecimento global é mudar a dinâmica da atmosfera,
e o transporte em larga escala", diz. "Isso pode,
sim, afetar o transporte de partículas do Saara para
a Amazônia, pois toda a dinâmica atmosférica
pode ser alterada". Mas são necessários
mais estudos para saber como isso ocorrerá.
Do G1/BBC Brasil