Em documento enviado ao
Conselho Indigenista da Fundação Nacional
do Índio (Funai), a ABA relaciona pontos,
com base na Constituição, a serem
considerados pelo governo eleito para estruturar
uma nova política indigenista. Leia o documento
na íntegra.
Em 18/11/02, o presidente da ABA
enviou carta, em nome da associação,
aos conselheiros do Conselho Indigenista da Funai.
Veja o texto que reproduzimos a seguir.
Ao
Conselho Indigenista
Fundação Nacional do Índio
Brasília - D.F.
Senhores Conselheiros,
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu,
no plano jurídico, o reconhecimento do caráter
pluriétnico e multicultural da sociedade
brasileira. Mas apesar de algumas transformações
nos modos de relacionamento entre povos indígenas,
sociedade nacional e Estado terem seguido as vias
apontadas pelo texto constitucional, os avanços
estão longe do desejável para um relacionamento
mais justo, ético e igualitário. O
viés compensatório dos danos da colonização
no Brasil, já presente na Constituição,
deve ser plenamente assumido ao mesmo tempo em que
uma avaliação dos feitos da política
indigenista deve presidir as discussões e
tomadas de decisão futuras. Na expectativa
de um amplo debate nacional, que reflua para a formulação
de uma nova política indigenista pautada
nos princípios constitucionais, a Associação
Brasileira de Antropologia apresenta ao Conselho
Indigenista os seguintes pontos para discussão.
Conceber um debate nacional em torno de uma política
indigenista leva, em primeiro lugar, a ter os povos
indígenas como interlocutores principais
- resguardada a sua sociodiversidade, a variedade
de suas formas próprias de representação
política e a singularidade de seus movimentos
políticos e organizações. Reconhecer
tal fato implica em aportar recursos para que os
povos indígenas possam manter contato entre
si, independentemente da presença estatal,
reunir-se, debater e estabelecer de modo mais amplo
pautas locais e regionais que refluam para uma participação
qualificada em foros de caráter nacional
no tocante às políticas públicas
que os afetem.
Em segundo lugar, significa reconhecer o grande
acúmulo de experiências inovadoras
desenvolvidas fora das fronteiras da administração
do Estado, bem como o fato de que a execução
da política indigenista não se esgota
num único órgão.
É preciso sublinhar que uma avaliação
ampla do que já tem sido feito (por organizações
indígenas, ONGs, outros setores do Estado,
em comissões paritárias com a participação
de indígenas, por articulações
entre a FUNAI e a cooperação técnica
bilateral), presidida por compromissos ético-morais
com os povos indígenas, deveria ser procedida
de modo a subsidiar as novas propostas de ação
de Estado.
A formulação dessa política
deveria caber a um Conselho de Estado de caráter
normativo, deliberativo e supervisor cuja vinculação
institucional deveria garantir sua independência
e alto compromisso com os povos indígenas.
Na conjuntura histórica atual, este Conselho
é necessário para integrar os ministérios
com funções de governo e fiscalização
relativas aos povos e terras indígenas. A
ele ficariam afetas também a formulação
de políticas setoriais como as de saúde
e educação e outras que deverão
surgir, sob seu estímulo e articulação.
Sua composição deveria ter ampla representação
indígena, construída de modo responsável
com apoio do governo federal, sem soluções
simplistas que equacionem o movimento indígena,
em sua complexidade e heterogeneidade, a organizações
do movimento social. Este Conselho deveria contar,
também, com representantes de universidades,
associações científicas e ONGs.
A execução de uma nova política
indigenista no tocante aos aspectos fundiários,
ambientais, de segurança, e de fomento ao
etnodesenvolvimento deveria ser responsabilidade
de um órgão da administração
federal, de caráter eminentemente técnico,
surgido de profundas reformas estruturais e dos
quadros da atual Fundação Nacional
do Índio (FUNAI), e concebido em diálogo
com diversos setores sociais. No processo de sua
estruturação, o Conselho acima citado
terá papel primordial. É, pois, importante
frisar que a escolha do titular deste órgão
e de seus cargos principais não devem ser
resultado da composição de alianças
de governo que firam os interesses dos povos indígenas.
Do contrário, o compensatório da política
indigenista continuará sendo desfigurado.
O órgão oficial deveria receber recursos
políticos, financeiros e de pessoal tecnicamente
qualificado em áreas como antropologia, ecologia,
direito, lingüística, sociologia, história,
geografia, geologia, engenharia florestal, agronomia,
formados ao nível de mestrado e dotados de
especialização em temas como o etnodesenvolvimento,
direitos humanos, direitos e problemas socioambientais.
Esses recursos deveriam ser compatíveis com
a enorme órbita geográfica e política
de sua intervenção. Ultrapassados
os marcos tutelar e assimilacionista, não
há porque se conceber funções
como as exercidas pela FUNAI ainda hoje. O órgão
seria, isto sim, um interlocutor das ações
de governo. Estas ações teriam também
como protagonistas os povos indígenas e suas
organizações, os demais segmentos
do Estado com atuação indigenista,
universidades, ONGs, e os níveis estadual
e municipal de governo, resguardadas as bases ético-morais
que sustentam as ações geradas por
esta interlocução. Sua estrutura interna
deverá ser compatível com um princípio
essencial para as futuras ações indigenistas:
o da flexibilidade das morfologias administrativas,
de modo a reconhecer e saber lidar com a sociodiversidade
indígena.
A formulação e execução
da política indigenista pautar-se-ia, assim,
pelo princípio da corresponsabilidade, em
que o fortalecimento e a compatibilização
das formas de representação política
dos povos indígenas fossem matéria
de atenção especial. É preciso
depurar esta nova política pública
das marcas clientelísticas, da cooptação
e das práticas corruptas, que têm caracterizado
muitas ações de Estado, dentre elas
as indigenistas. A execução da política
indigenista assim concebida deve ser objeto de controle
social atento por instâncias da sociedade
civil organizada, pelos movimentos indígenas,
pela esfera judicial, e sobretudo pelo Ministério
Público Federal.
Para efetivar tais diretrizes, é imprescindível
aprovar o Estatuto dos Povos Indígenas, inaugurando-se
uma nova regulação infra-constitucional
que norteie outros diplomas legais compatíveis,
de modo a enfrentar as pressões anti-indígenas
- tais como as que se expressam no Congresso Nacional
na forma de propostas de emendas constitucionais
e projetos de lei ora em tramitação.
A regularização de terras indígenas
deve ter continuidade e avançar. É
preciso ter consciência que as terras indígenas
fora da região-alvo do Projeto Integrado
de Proteção às Populações
e Terras Indígenas da Amazônia Legal
- PPTAL/Programa Piloto para a Proteção
das Florestas Tropicais do Brasil - PPG7 não
podem continuar sendo desconhecidas, demandando
a resolução de inúmeros conflitos
crônicos e a obtenção de recursos
como aqueles necessários à indenização
de benfeitorias de boa-fé de ocupantes não-índios,
com vistas à sua extrusão.
A regularização das terras indígenas
deve ser pensada também como parte de um
processo mais amplo de aporte das condições
para a gestão territorial voltada ao etnodesenvolvimento.
Isto implica em realizar investimentos de ordens
variadas. É, portanto, necessário
que existam recursos financeiros do Estado brasileiro
tanto para a ampliação do associativismo
indígena, para o controle pelos povos indígenas
de seus territórios, quanto para viabilizar
a exploração sustentável de
recursos naturais.
As políticas setoriais para os povos indígenas
deveriam ser igualmente reavaliadas com vistas à
sua ampliação e melhor execução.
Esta reavaliação deveria ser presidida
pela assunção plena das responsabilidades
do governo federal por sua execução.Seria
desejável que outros órgãos
da administração pública fossem
capacitados para atuar junto aos povos indígenas
e que isto ensejasse a concepção de
outras políticas setoriais, em consonância
com as diretrizes do Conselho e do órgão
indigenista. Seriam exemplos destas políticas
as para fomento ao etnodesenvolvimento, por parte
de órgãos como o BNDES e outros.
Na esfera da política de saúde indígena,
tal como vem sendo implantada pela Fundação
Nacional de Saúde (FUNASA), é absolutamente
necessária uma avaliação acurada,
implementada de fora do âmbito das instituições
dela executoras - seja a própria FUNASA,
sejam as instituições a ela conveniadas,
seja a FUNAI - de modo a que os problemas fundamentais
que até agora têm sido constatados
possam ser ultrapassados. A implantação
dos distritos sanitários especiais indígenas
(DSEIs) deverá se basear no princípio
de que as formas administrativas devem se aproximar
das realidades indígenas e não o oposto.
Para isto a FUNASA deveria ser capacitada a operar
a partir de princípios antropológicos
e fortalecida de modo mais amplo para executar plenamente
suas tarefas.
A FUNASA deverá ficar impedida de municipalizar
os seus recursos: entendemos que a execução
da política de saúde indígena
é primariamente de responsabilidade do Estado
brasileiro. A FUNASA deverá, isto sim, desempenhar
o papel de capacitar e assessorar as organizações
a ela conveniadas em bases sólidas, também
do ponto de vista da Antropologia. No mesmo espírito
de colocar os interesses indígenas como prioritários,
a FUNASA deveria controlar estritamente o uso dos
recursos pelas prefeituras envolvidas nos DSEIs.
Para que esta execução seja efetivada,
dentre as atribuições do Conselho
que delineamos acima estaria a tarefa de participar
intensamente no exercício do controle social
sobre essas ações de Estado, até
agora basicamente afetas ao Conselho Nacional de
Saúde, cooperando com os povos indígenas
e a sociedade civil organizada na sua realização.
Seria preciso, insistimos, que haja investimento
na preparação de recursos humanos
para atuar na área de saúde, a começar
pelos próprios quadros da FUNASA, formando-os
nas habilidades e competências necessárias
à compreensão e efetiva atuação
junto aos povos indígenas. Os fluxos financeiros
para execução dessas ações
de Estado deverão ser concebidos sob a forma
de planos plurianuais e repassados de modo regular
e infenso a manipulações políticas.
Da mesma maneira, a política de educação
indígena deveria ter seus princípios
e execução revistos, em bases análogas
às que propusemos antes no tocante à
política de saúde. A sua execução
pelos estados e municípios deve ser um foco
privilegiado de tal avaliação. Pela
importância de que esta política vem
se revestindo nos dez últimos anos, pelos
inúmeros problemas suscitados pela aplicação
genérica e, muitas vezes, burocratizada dos
"Parâmetros Curriculares Nacionais de
Educação Escolar Indígena",
julgamos oportuno uma reflexão densa sobre
o que foi feito até agora.
Consideramos que esta é a primeira experiência
de política compensatória no campo
da educação no Brasil e que, a partir
dessa avaliação, seria necessário
elaborar um conjunto de medidas que viabilizassem
o acesso diferenciado dos povos indígenas
aos níveis médio e superior de educação,
tendo em vista uma demanda crescente. Do mesmo modo,
a formação dos indígenas para
o efetivo exercício da cidadania deveria
ser enfatizada nas metas da educação
para indígenas como tem sido concebida. Nestes
termos, seria preciso estudar um melhor enquadramento
institucional para a política de educação
indígena, compatível com as suas dimensões
e metas, bem como as melhores maneiras de efetivar
de modo eficaz a participação indígena
sem que isto se reduza a uma mera retórica.
Esperamos que os pontos ora levantados subsidiem
o estabelecimento de um amplo debate nacional capaz
de configurar um novo patamar para as políticas
públicas relativas aos povos indígenas,
ou aquelas que os afetem, no quadro da transição
entre o governo atual e o eleito. Na expectativa
de uma relação favorável dos
poderes públicos com os povos indígenas,
a ABA se dispõe de modo irrestrito a participar
desse debate.
Gustavo Lins Ribeiro
Presidente
Associação Brasileira de Antropologia