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BANCOS INTERNACIONAIS
HESITAM EM FINANCIAR
TÉRMINO DE POLÊMICO GASODUTO
NO PERU
Panorama Ambiental
São Paulo (SP) – Brasil
Agosto de 2003
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Sob pressão
mundial de entidades ambientalistas e de defesa
dos direitos humanos, o Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID) e o Export-Import Bank of
the United States (Ex-Im) não chegam a um
consenso sobre liberar ou não créditos
para que possa ser concluído o projeto de
extração de gás natural implantado
em uma reserva indígena peruana, ao lado
de uma das regiões mais importantes para
a biodiversidade do planeta.
O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
e o Export-Import Bank of the United States (Ex-Im)
adiaram ontem (06/08), pela segunda vez em duas
semanas, a decisão de financiar ou não,
com dinheiro público, a exploração
das reservas de gás natural de Camisea, no
Peru. O BID concederia um empréstimo direto
de US$ 75 milhões e pelo menos US$ 200 milhões
em créditos indiretos, enquanto o Ex-Im participaria
com US$ 250 milhões, vitais para o término
dos trabalhos, já concluídos em 60%.
Desta vez, estima-se que o adiamento é por
pelo menos um mês.
O Camisea (www.camisea.com.pe/esp/project.asp) é
um dos mais polêmicos projetos sendo desenvolvidos
hoje na América Latina. Orçado em
torno de US$ 2,6 bilhões, é composto
por três etapas diferentes: exploração,
transporte e distribuição do gás
natural de quatro jazidas descobertas entre 1983
e 1987, a cerca de 430 km de Lima, a capital peruana.
Três dessas jazidas situam-se na reserva de
povos nômades Nahua-Kugapakori, que fica ao
lado do Parque Nacional do Manú - considerado
uma das zonas mais ricas do mundo em termos de biodiversidade
pela Conservation International e pelo Smithsonian
Institution. Não bastasse isso, um possível
porto de exportação seria implantado
próximo à Reserva de Paracas, um dos
santuários marinhos mais importantes da América
Latina, reconhecido pela Convenção
de Ramsar (www.ramsar.org/profiles_peru.htm).
Com um potencial estimado em 311,85 bilhões
de metros cúbicos e um grau de recuperação
de 79%, o conjunto representa a maior reserva de
gás natural não associado – sem petróleo
- da América Latina, dez vezes a quantidade
de qualquer outra do Peru. De acordo com uma declaração
feita em fevereiro (www.mem.gob.pe/wmem/prensa/notihoy839.pdf)
deste ano pelo coordenador geral do governo para
o Projeto Camisea, Luis Ortigas Cúneo, o
impacto no Produto Interno Bruto do país
havia sido de 0,5% positivo em 2002. A previsão
era de um acréscimo de 1% em 2003 e de uma
média de 0,8% durante a vida dos contratos
de exploração, que vão de 33
anos, para o transporte e distribuição,
a 40 anos, para a extração. Além
disso, seriam economizados mais de US$ 5 bilhões
nos setores de transporte, indústria e eletricidade,
por causa da substituição de outros
combustíveis pelo gás.
Preocupação
socioambiental
O local onde estão
as reservas de gás de San Martín e
Cashinari, também conhecidas por Bloco 88
ou Camisea (devido à cidade, de mesmo nome),
foi considerado pela International Union for the
Conservation of Nature, por conta da biodiversidade
que apresenta, como “o último lugar da terra
onde se deveria fazer perfurações
de extração de combustíveis
fósseis”. Tratava-se de uma região
praticamente intocada, a não ser pelas populações
indígenas que ali habitam, até a instalação
das companhias de extração.
Neste contexto, esperava-se atenção
e o cumprimento estrito da legislação
ambiental por parte dos consórcios ganhadores
do concurso público internacional para a
extração do gás, promovido
em 2000 pelo governo peruano, depois da Shell desistir
da exploração, em 1998.
Para se entender melhor o que significou a Shell
ter abandonado o projeto, deve-se retomar um pouco
de sua história. Três das jazidas de
gás natural estão situadas na reserva
indígena Nahua-Kugapakori, criada em 11000
para proteger os povos nômades de Nahua (Yora),
Kirineri e Nanti (Kugapakori). Praticamente sem
nenhuma relação com o mundo exterior
e vivendo em isolamento voluntário, eles
não possuem sistema imunológico para
doenças comuns aos ‘brancos’. Após
um incauto primeiro contato promovido pela Shell
no final dos anos 1980, 40% da população
da etnia Nahua foi dizimada pelas enfermidades introduzidas.
A empresa, então, adotou diversas medidas
para dar mais transparência e permitir uma
maior participação da comunidade local.
Contratou-se uma equipe da Smithsonian Institution
para fazer o levantamento da biodiversidade na área
dos poços de perfuração e ao
longo das rotas dos gasodutos. As análises
foram feitas desde o início do projeto e
os dados influenciavam diretamente as decisões.
Questões-chave como o local da planta de
gás, rotas dos dutos e propostas para se
lidar com o impacto socioambiental indireto (tais
como o acesso de colonos e madeireiros devido às
estradas abertas no período de construção)
foram discutidas em workshops, resultando na adoção
de uma política de não criação
de estradas para a região dos poços,
acesso restrito às regiões dos dutos
e abertura para que equipes peruanas independentes
e especialistas internacionais pudessem fazer recomendações
e o monitoramento biológico. Esta parte do
processo, descrita pelo site Redlisted, chegou a
ser elogiada pela Conservation International na
publicação Lightening the Lode, a
guide to responsible large-scale mining de 2000.
Os novos
consórcios
Após a desistência
da Shell, o Projeto Camisea foi dividido em dois
consórcios. Ficou a cargo da exploração
das jazidas a Transportadora de Gas del Perú
(TGP), formada pelas empresas Pluspetrol Perú
Corporation S.A. (Argentina), Hunt Oil Company of
Peru (Estados Unidos), SK Co. (Coréia do
Sul) e Tecpetrol (do Grupo Techint, Itália),
enquanto o transporte dos líquidos e do gás
natural será feito pela Tecgas N.V. (do Grupo
Techint), Pluspetrol Resourses Corporation, Hunt
Oil Company, SK Corporation, Sonatrach Petroleum
Corporation B.V.I. (Inglaterra) e Graña y
Montero S.A. (Peru).
Os novos consórcios não têm
permitido monitoramento independente, não
utilizaram os dados levantados pela Smithsonian
Institution e vêm registrando, desde 2000,
freqüentes violações à
legislação ambiental do país.
De acordo com a Amazonwatch, uma das entidades internacionais
que acompanham de perto o projeto, a Pluspetrol
já levava equipamentos por barcos e helicópteros
ao sítio de exploração pelo
menos dois meses antes de conseguir a licença.
Esta mesma licença também foi concedida
quatro dias antes de se encerrar o prazo dado pelo
próprio governo para que organizações
como o Consejo Machiguenga del Río Urubamba
e a Asociación Interétnica de Desarollo
de la Selva Peruana pudessem avaliar o Relatório
de Impacto Ambiental fornecido pelas empresas, um
direito garantido pela Convenção 169
da Organização Internacional do Trabalho.
Algumas visitas de membros da Amazonwatch também
levantaram outras irregularidades, como o não-cumprimento
das regras de largura máxima para o caminho
por onde passam os dutos, tráfego de helicópteros
carregando canos por regiões povoadas (já
houve pelo menos uma queda de canos) e aceleração
de barcos de carga em regiões habitadas por
povos indígenas. Esta última prática
provocou a morte de uma menina de 5 anos na comunidade
de Kirigueti em 25/08/2002, cerca de dez dias após
uma audiência pública, na qual a companhia
foi avisada dos perigos que ela poderia causar.
Em uma dessas visitas, um grupo de ONGs narra um
incidente entre índios e trabalhadores, no
dia 09/08/2002: “(...) sete indivíduos indígenas
(‘calatos’ ou homens nus) brandindo galhos sobre
suas cabeças, balançando árvores
e gritando continuamente, interromperam um grupo
de operadores operando na Linha Sísmica 40
dentro da Reserva. Depois que os trabalhadores fugiram,
um helicóptero da companhia sobrevoou a região
para ‘fazê-los correr também’”. De
acordo com especialistas contatados pela entidade,
o mero fato de índios em isolamento voluntário
recorrerem a este tipo de atitude revela o impacto
que os testes estavam tendo em suas vidas. Relatos
mais recentes, do final de julho deste ano (www.amazonwatch.org),
apontam já haver poluição nos
rios e diminuição dos recursos naturais
para os povos tradicionais da região, culturalmente
dependentes da caça e pesca para a sobrevivência.
Impacto ambiental,
bancos internacionais e o brasileiro BNDES
A luta contra a liberação
de financiamento por parte do BID e do Ex-Im vem
desde dezembro de 2002, quando os bancos adiaram,
pela primeira vez a decisão sobre a liberação.
O brasileiro Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES) também está sendo
sondado para liberar US$ 109 milhões em créditos
para serem usados na compra de dutos brasileiros,
mas o contrato ainda está em análise,
devido à repercussão negativa. A partir
de dois acontecimentos, no final do primeiro semestre
deste ano é que o movimento contra o projeto
tomou impulso.
Em maio, a pedido da Environmental Defense, organização
norte-americana que também acompanha o caso
de perto, o grupo de profissionais especializados
em projetos de infra-estrutura Global Village Engineers
realizou uma análise de três Estudos
de Impacto Ambiental relacionados aos campos de
exploração e à planta de fracionamento
de líquidos de gás natural, concluindo
que nenhum deles providencia informação
de qualidade para preencher os requerimentos do
banco Ex-Im, além de ferir dois dos sete
objetivos ambientais e as diretrizes relacionadas
ao desenvolvimento de óleo e gás da
Environmental Defense
Por meio do Freedom of Information Act, a Amazonwatch
também conseguiu acesso a um relatório
interno do próprio Ex-Im, produzido em maio
de 2003. Ali, revela-se que a localização
da planta de destilação e fracionamento
para exportar gás líquido para os
Estados Unidos foi escolhida por motivos econômicos,
e não ambientais, tendo permitido uma economia
de US$ 50 milhões a US$ 100 milhões.
A planta, a ser construída pela Kellog Brown
& Root, uma subsidiária da Halliburton,
ficará bem próxima à Reserva
Natural de Paracas. O relatório diz que um
duto abaixo d’água mataria peixes, mamíferos
e pássaros da reserva, sendo que o projeto
“está mal preparado para um vazamento de
qualquer magnitude”.
Após relatar “deslizamentos maciços”
pelo trajeto dos dutos, o levantamento considera
ainda que as empresas voltadas para a exploração
e transporte do gás falharam em examinar
os impactos secundários do projeto: “o acesso
levará à perda contínua de
cobertura florestal e redução na população
de espécies de plantas e animais importantes
em grandes áreas (...) Tais efeitos são
negativos, significantes, de longo prazo e irreversíveis
sem mitigação efetiva através
da operação do projeto e após
o seu encerramento”. Isso poderia afetar as quatro
reservas da região.
As empresas
“sob suspeita”
Quatro companhias
são freqüentemente citadas nos relatos
das organizações independentes atuantes
na região do Projeto Camisea, seja por um
passado marcado por desastres ambientais, seja por
uma proximidade suspeita ao governo do presidente
George W. Bush. A Pluspetrol, uma das principais
empresas do consórcio TGP, era a responsável
quando um vazamento de 5.500 barris de petróleo
no Río Marañón devastou uma
das maiores áreas protegidas do Peru, a Reserva
Pacaya-Samiria, a nordeste do país, e afetou
cerca de 20 mil pessoas (a maioria pertencente ao
grupo Cocamas-Cocamillas) em 2000. De acordo com
a Amazonwatch, a companhia também continua
bombeando resíduos de petróleo na
Amazônia peruana do norte, provocando diversas
enfermidades em habitantes das comunidades Achuar
e Quichua. Já a Techint (controladora da
fabricante de tubos brasileira Confab), operava
um gasoduto que explodiu duas vezes em 2000, sendo
uma delas no bosque de Yungas, área em estado
crítico e conservação e habitat
do quase extinto jaguar. No Equador, a Techint faz
parte do consórcio de exploração
do gasoduto OCP, outro projeto listado como arriscado
<http://www.redlisted.com> pelo consórcio
de analistas de riscos socioambientais de projetos
na América Latina Redlisted. Na lista estão
também os projetos brasileiros Usina de Belo
Monte, gasoduto Urucu-Porto Velho e Hidrovia Araguaia-Tocantins.
Segundo um estudo do Banco Mundial, o OCP violou
as quatro políticas de segurança do
banco relacionadas a aspectos socioambientais, especificamente:
avaliação ambiental, habitats naturais,
reassentamento involuntário e povos indígenas.
Além do aspecto ambiental, os jornais The
Washigton Post (EUA), The Independent e The Guardian
(Inglaterra) têm levantado diversas ligações
entre as companhias Hunt Oil e Halliburton e a presidência
dos Estados Unidos. Antes de concorrer em 2002,
o vice-presidente norte-americano Dick Cheney era
chefe-executivo (chief-executive) da Halliburton
Co., cuja subsidiária, a Kellog Brown &
Root, seria a mais bem cotada para construir a planta
de destilação e fracionamento de US$
1 bilhão nas proximidades da Reserva Nacional
de Paracas. De acordo com a Corpwatch, a companhia
ainda faz pagamentos anuais a Cheney; está
envolvida em um caso de suborno milionário
na Nigéria para obter tratamento diferenciado
no pagamento de impostos e possuía contratos
com o exército norte-americano antes de as
primeiras bombas caírem no Iraque, onde hoje
é responsável pela reconstrução
da infra-estrutura de óleo. Já o presidente
(chairman) da Hunt Oil, Ray Hunt, foi um dos principais
levantadores de fundos para a campanha presidencial
de Bush, tendo contribuído, assim como sua
mulher, com a quantia máxima permitida a
uma pessoa, US$ 2 mil. Segundo a Friends of the
Earth (www.foe.org/new/releases/0703camisea.html)
(no Brasil, Amigos da Terra), Hunt também
participa do Conselho da Halliburton, que conduz
estudos sobre uma eventual exportação
do combustível para a Califórnia (EUA).
Fonte: ISA – Instituto Sócio
Ambiental (www.socioambiental.org.br)
Flávio Soares de Freitas