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NOVO DECRETO
PODE ACELERAR
A TITULAÇÃO DE TERRAS DE QUILOMBOS
Panorama
Ambiental
Brasília (DF) - Brasil
Dezembro de 2003
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Publicado
pelo Governo Federal no dia 20/11, o Decreto nº
4.887/03 traz um novo marco regulatório para
o processo de reconhecimento, titulação
e promoção de desenvolvimento socioambiental
de territórios quilombolas.
Assinada no Dia Nacional
da Consciência Negra, a nova legislação
representa um avanço em relação
à anterior - o Decreto nº 3.912, de
10/09/2001 -, alvo de críticas por parte
do movimento quilombola, do movimento negro, da
academia e de ONGs. A partir de agora, o critério
para o reconhecimento de uma comunidade quilombola
é o da auto-identificação.
Parecido com o adotado para os povos indígenas,
dá novo tratamento à questão
fundiária dos quilombos ao vincular a delimitação
do território à reprodução
física, social, econômica e cultural
da comunidade envolvida. Isso inclui não
só a área destinada à moradia,
mas também aquela para o plantio, caça,
pesca e manejo agroflorestal.
Fica dispensada, portanto, a exigência de
comprovação documental da descendência
de escravos fugidos e da posse histórica
ininterrupta sobre o território, desde a
abolição da escravatura (1888), até
a promulgação da Constituição
Federal (1988). "Essa regra era antropologicamente
absurda, historicamente equivocada e juridicamente
inconstitucional", afirma o advogado Raul do
Valle, assessor do Programa Política e Direito
Socioambiental do ISA. "Muitas comunidades
eram formadas por escravos libertos e diversas foram
criadas mesmo depois do fim da escravidão,
como forma de sobrevivência numa sociedade
marcada pela ideologia escravocrata. Além
disso, durante os últimos cem anos, essas
comunidades foram deslocadas de suas terras pela
invasão e exploração promovidas
por terceiros."
Outro avanço trazido pelo Decreto nº
4.887 é a participação do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra) no processo de titulação
das terras de quilombo. Antiga reivindicação
do movimento quilombola, visa sanar o problema da
falta de infra-estrutura da Fundação
Palmares - instituição ligada ao Ministério
da Cultura que desde o governo FHC era a responsável
pelo levantamento e demarcação fundiária
das terras, além de seu trabalho de reconhecimento
das comunidades quilombolas e de preservação
de sua cultura. O decreto observa que para as atividades
com as quais o Incra não está acostumado
ou não tem pessoal qualificado, como a identificação
antropológica da comunidade e a avaliação
ambiental do território, poderão ser
realizados convênios com outros órgãos
públicos federais ou estaduais.
A garantia da propriedade coletiva da terra também
faz parte do novo decreto. A partir de agora, o
título será registrado em cartório
em nome de uma associação representativa
da comunidade quilombola, e caracterizará
a terra como pró-indiviso e inalienável,
ou seja, impedirá que o território
possa ser dividido ou mesmo vendido ou arrendado,
o que reforça o seu caráter coletivo.
A organização em associações
também deve estimular a maior articulação
política dos quilombolas. Pela norma anterior,
não ficava claro se a terra seria concedida
para cada família ou para a comunidade como
um todo.
Mas a iniciativa não é inédita.
A propriedade coletiva era um princípio defendido
por muitos setores do movimento quilombola e já
tinha sido incorporado ao Projeto de Lei da então
senadora Benedita da Silva (PL nº 129/95),
para a regulamentação do direito à
terra dos quilombos. Mas resistências dentro
do governo federal, que entendia que o direito à
terra assegurado na Constituição era
exclusivamente individual, levaram ao veto integral
do PL, após sua aprovação no
Senado Federal em abril de 2002.
O processo
de discussão
Muitas das novidades
incorporadas ao decreto surgiram de sugestões
feitas por representantes do movimento quilombola,
do movimento negro e de ONGs de apoio, que participaram,
em conjunto com representantes de diversos ministérios,
do grupo de trabalho (GT) instituído pela
Casa Civil em 13/05/2003, para rever o Decreto nº
3.912 e propor um novo marco regulatório.
O GT foi originado de uma proposta dos quilombolas
encaminhada pela Secretaria Especial de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial e
teve em sua composição representantes
de 13 ministérios e da Advocacia Geral da
União, além de seis quilombolas, sendo
três titulares e três suplentes.
O representante titular do GT para a região
Sudeste, Oriel Rodrigues, originário do quilombo
de Ivaporunduva (SP), conta que, no início,
o Grupo de Trabalho estava discutindo questões
consideradas ultrapassadas pelos quilombolas, uma
vez que já tinham consenso sobre elas, como
a propriedade coletiva da terra e a assimilação
de disposições do artigo 68 da Convenção
169 da OIT. Os quilombolas apresentaram então
cinco pontos principais que deveriam ser discutidos:
a garantia do direito à terra, a definição
de um novo órgão responsável
pela titulação das terras, formas
de indenização e remoção
de ocupantes irregulares, sobreposição
de áreas quilombolas com unidades de conservação
e áreas militares, e a adaptação
das políticas públicas para os remanescentes
de quilombos.
A polêmica
do laudo
Uma das polêmicas
surgidas durante essas discussões foi a necessidade
de laudo antropológico para reconhecimento
da identidade dos quilombolas, defendida pela Associação
Brasileira de Antropologia (ABA). Entretanto, o
decreto acatou o princípio da auto-identificação,
que dispensa o laudo como elemento essencial do
processo de reconhecimento. "Não somos
contra o laudo, mas ele representa atualmente um
empecilho à solução da questão
quilombola", afirma Oriel Rodrigues. Segundo
ele, existem 3 milhões de quilombolas, espalhados
por duas mil comunidades em todo o Brasil. Após
15 anos da promulgação da Constituição
de 1988, que garante o direito dos quilombolas à
sua terra, 747 comunidades estão reconhecidas,
sendo que apenas 46 são tituladas. "Se
o processo de elaboração de um laudo
antropológico demora de seis meses a um ano,
sabe-se lá quando conseguiríamos o
reconhecimento de nossos direitos, caso dependêssemos
obrigatoriamente desse instrumento", argumenta
Rodrigues. "Do modo como ficou o decreto, o
laudo antropológico deixa de ser um ônus
para os quilombolas e se torna um procedimento necessário
apenas para quem quiser contestar a identidade de
determinado grupo."
Vale lembrar que pontos importantes do decreto,
como a auto-definição, foram assimilados
da Convenção 169 da OIT, ratificada
pelo Brasil em julho desse ano. De qualquer modo,
Oriel Rodrigues afirma que criar um relatório
técnico com assessoria antropológica
será um procedimento fundamental para o Incra
em seu trabalho de delimitação dos
territórios quilombolas.
O antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida,
que trabalha há anos com a questão
quilombola, faz uma ressalva: "Fica a necessidade
de se pensar um instrumento de reconhecimento de
direitos étnicos e não apenas de direitos
agrários, como estabelece o decreto".
Wagner alerta que a ausência do laudo antropológico
pode ser bastante prejudicial à identificação
dos usos dos recursos naturais, do aumento das famílias
e do tamanho do território quilombola em
questão. O antropólogo espera que
esse tipo de exigência, conste da instrução
normativa que trará os procedimentos relacionados
às normas do Decreto nº 4.887/03.
Repercussão
De modo geral, Oriel
Rodrigues afirma que o resultado final do decreto
é bastante positivo. Um bom termômetro
foi o III Encontro Nacional das Comunidades Negras
Rurais Quilombolas, realizado de 4 a 7/12, em Recife,
onde a norma foi discutida com representantes de
ministérios que compõem o GT, da Fundação
Palmares e do Incra, e foi considerada um marco
da inserção dos quilombolas na discussão
de políticas públicas com o governo.
Ainda assim, Oriel ressalta três pontos que
foram deixados de lado pelo decreto e que poderão
ser contemplados por meio de portarias. A primeira
é a ausência do Ministério das
Minas e Energia da composição do Comitê
Gestor para as políticas públicas.
"Essa é uma ausência grave, já
que muitas terras estão em áreas de
barragens e de mineração e que muitas
comunidades não dispõem de energia
elétrica", explica Rodrigues. Ele aponta
ainda a falta de um representante quilombola no
comitê e que é preciso tratar da especificidade
dos quilombos na questão ambiental, uma vez
que são agentes de conservação
da biodiversidade e de conhecimento tradicional
associado.
É importante frisar que o Decreto nº
4.887 veio regulamentar a atuação
do governo federal na questão e portanto
não influencia a atuação dos
estados que já realizam a titulação
de terras de remanescentes de quilombos, como no
caso de São Paulo, que tem uma lei própria
regulamentando a matéria (Lei nº 9757/97).
Fonte: ISA – Instituto Sócioambiental
(www.socioambiental.org.br)
Assessoria de imprensa (Fernando Baptista)