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OS ÍNDIOS
E A FRONTEIRA
Panorama
Ambiental
São Paulo (SP) – Brasil
Janeiro de 2004
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Neste artigo, Márcio
Santilli lembra que cada vez que o tema índios
e fronteira volta à pauta, o que se observa
é que não há preocupação
em recuperar a memória das crises anteriores.
De tempos em tempos se repõe na mídia
o tema da demarcação de terras indígenas
nas regiões de fronteira. Jornalistas, militares
e especialistas são chamados a identificar
riscos para a soberania nacional, geralmente no
bojo de crises específicas que pipocam em
momentos de tomada de decisão sobre demarcações,
ou pela falta de ação dos poderes
públicos responsáveis. No entanto,
cada vez que volta o tema, não há
preocupação em recuperar a memória
das crises anteriores, verificar o que resulta dos
processos respectivos ao longo do tempo.
Agora, estão em pauta as reações
de produtores de Roraima ao anúncio da decisão
do governo federal em homologar a demarcação
da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, e
a ocupação pelos índios Guarani
Kaiowá de 14 fazendas no Mato Grosso do Sul.
Manchetes, editoriais e páginas inteiras
dos jornais patinam em números desconexos
e na procura de uma lógica política
que dê sentido aos fatos. Sem sucesso.
O caso de Roraima é emblemático. Os
Ingarikó, Macuxi e Wapixana vivem na região
de fronteira entre o Brasil e Guiana desde tempos
imemoriais. Etnias aparentadas, elas estão
em áreas contíguas situadas na Guiana
e na Venezuela. É fartíssima a documentação
histórica disponível sobre a presença
destes povos desde que se iniciou o processo de
colonização.
Quando, há 100 anos, se deram as difíceis
negociações internacionais para a
definição deste trecho da fronteira,
a presença destes povos e manifestações
de lealdade dos seus chefes ao estado brasileiro
foram elementos importantes para que a região
de Raposa-Serra do Sol, então chamada de
“área do contestado”, integrasse o território
nacional, enquanto as pretensões territoriais
da Grã-Bretanha se estendiam até o
Rio Cotingo. Joaquim Nabuco, em seu livro O Direito
do Brasil, registra essa passagem. Seria de toda
justiça que os especialistas brasileiros
em geopolítica, se tivessem memória
histórica, reconhecessem isso, em vez de
teorizar sobre hipóteses estratégicas
limítrofes, em que potências internacionais
se apropriariam de terras indígenas fronteiriças
para impor a desintegração territorial
do país. No geral, há mais de cem
terras indígenas situadas em faixa de fronteira
e oficialmente reconhecidas pelo estado brasileiro,
o que não justifica o recurso à tese
neste caso específico. E dadas as circunstâncias
do caso, este recurso chega
a ser cínico.
Demarcação
é imprescindível para reduzir conflitos
em faixa de fronteira: o exemplo Yanomami
A doutrina estratégica
brasileira mais sábia sobre índios
na fronteira foi formulada pelo Marechal Cândido
Rondon - cuja mãe era descendente de índios
bororo - forjada com base na sua experiência
de vida, com a mão na massa. Em seu livro
Muralhas dos Sertões ele caracteriza a importância
que políticas indigenistas positivas, inclusive
para a demarcação das terras indígenas,
têm para assegurar a tranqüilidade e
a segurança nas regiões de fronteira.
Ou seja, ao contrário do que dizem vários
especialistas recém-consultados pela mídia,
a demarcação das terras indígenas,
como elemento de ordenamento da estrutura fundiária,
é imprescindível para a redução
dos conflitos, especialmente em faixa de fronteira.
Um exemplo claro disso, e mais recente, é
o da Terra Indígena Yanomami. Enquanto a
terra ainda não estava demarcada e, sobretudo,
quando se tentou demarcá-la em “ilhas” para
“liberar” a maior parte da sua extensão para
a prática do garimpo predatório, computaram-se
mais de dois mil índios mortos em decorrência
de conflitos diretos, da malária e de outras
doenças. Dezenas de milhares de garimpeiros
brasileiros invadiram a área, inclusive em
território da Venezuela, provocando incidentes
diplomáticos. E o Brasil praticamente não
ganhou nada com as muitas toneladas de ouro extraídas
e contrabandeadas dali.
O caso tornou-se um escândalo planetário,
produzindo notícias e manifestações
de indignação no país e em
todo o mundo dito civilizado. Pois bem, a área
foi demarcada em 1992, apesar da forte objeção
das mesmas forças políticas que agora
se opõem à homologação
de Raposa-Serra do Sol. Ainda ocorrem invasões
esporádicas e em pequena escala, assim como
ainda há muito a fazer em termos de políticas
públicas para os Yanomami, mas já
não se tem a sangria desatada dos anos anteriores,
nem cobranças sobre o governo, nem conflitos
tumultuando a fronteira ou dificultando o trabalho
dos pelotões do Exército que lá
se encontram instalados.
A Constituição brasileira define que
as terras indígenas são bens da União,
assim como estabelece a competência das Forças
Armadas na proteção da fronteira.
Não há margem de dúvida quanto
à estabilidade jurídica com que estas
terras integram o território nacional. E
quanto às situações de fato,
é a ausência ou a indefinição
das demarcações que abrem espaço
para a ocorrência de conflitos, com implicações
para a defesa nacional. A homologação
de Raposa-Serra do Sol ainda poderá provocar
protestos de interesses contrariados em nível
local, mas é medida indispensável
e urgente para restabelecer a justiça e a
tranqüilidade nessa parte da fronteira do Brasil.
Desrespeito
aos direitos dos índios: o triste exemplo
dos Guarani-Kayowá
Já o caso
dos Guarani-Kaiowá é um retrato de
outro momento histórico, desdobramento de
uma situação do passado em que não
se fez justiça aos direitos dos índios.
Eles constituem o mais numeroso grupo Guarani, que,
por sua vez, é a mais numerosa dentre as
mais de duzentas etnias que vivem no Brasil. Cerca
de 30 mil índios ocupam 28 terras de pequena
extensão no Mato Grosso do Sul, somando cerca
de 50 mil hectares, parte dos quais com intrusão
de terceiros. Confinados nessas “ilhas”, cercados
de bois e de soja, estes índios são
recordistas na prática do suicídio.
O conflito específico que ora os envolve
tem a ver com uma destas “ilhas”, a Terra Indígena
Porto Lindo, que os Kaiowá querem ver ampliada
através da incorporação de
fazendas vizinhas aos seus limites. É um
conflito importante, que mobiliza mais de três
mil índios, chama a atenção
da mídia e provoca reações
de fazendeiros e do próprio governador do
estado, Zeca do PT. Os fazendeiros acusam os índios
ocupantes de comerem o seu gado. O governador acusa
a Fundação Nacional do Índio
(Funai) de tentar demarcar áreas tituladas.
E também se trata de um conflito na faixa
de fronteira (neste caso, com o Paraguai). Não
se pergunta de onde saíram milhares de índios,
ou porque eles comem os referidos bois.
Os Guarani
e a colonização do Brasil
Os Guarani foram
o povo que acolheu como aliados os colonizadores
portugueses que chegaram ao Brasil no século
XVI. Foram a base de sustentação social
da colonização de todo o centro-sul
do país, contra outras etnias, especialmente
as do grupo Jê, muito mais resistentes à
construção do Brasil. Eram os estereótipos
do “bom selvagem”. Havia milhões deles, provavelmente.
A historiografia registra que, há 100 anos,
as línguas guarani (aqui incluído
o Nhengatú, inventada pelos jesuítas)
ainda eram as mais faladas no interior de São
Paulo. Eles estão presentes na literatura,
na culinária e nos nomes oficiais de rios
e de cidades. Há grupos remanescentes até
mesmo dentro da cidade de São Paulo.
Só que estes aliados de primeira hora sofreram
alguns fortes azares da história. No período
em que o Marquês de Pombal deu as cartas no
império português e extinguiu os antigos
“aldeamentos indígenas” expulsando os jesuítas
que os tutelavam, e promovendo um novo ciclo de
expropriação de territórios
indígenas para intensificar a colonização,
os Guarani viraram base social da Igreja Católica,
que se opunha, então, às políticas
de estado. Eles foram, aos milhares, removidos para
as missões, e o seu sangue escreveu páginas
heróicas de resistência, como se lê
no livro A República Comunista Cristã
dos Guarani, de Clóvis Lugon. Nesta balada,
acabaram sendo massacrados, escravizados e expulsos
pelas forças militares então responsáveis
pela tal soberania (que ainda era a do estado português).
Depois da
Guerra do Paraguai, terras para os Kadiwéu,
nada para os Guarani
Mas não parou
por aí. Os Guarani voltaram ao pódio
dos inimigos públicos do Brasil durante a
Guerra do Paraguai, identificados que eram como
seguidores de Solano Lopez. Terminada a guerra,
os índios Kadiwéu, inimigos dos Guarani
e aliados do exército brasileiro contra o
Paraguai, receberam como prêmio, das mãos
do próprio Duque de Caxias, o reconhecimento
de um “território contínuo” na faixa
de fronteira. Para os Guarani, com população
então e sempre muito maior que a dos Kadiwéu,
o estado brasileiro não deu nada. Foi a muito
custo que a Funai conseguiu, em anos recentes, recuperar
algumas poucas “ilhas” de terra para mal abrigar
os derrotados.
O que hoje se vê no Mato Grosso do Sul é
apenas o pipocar de um dos conflitos decorrentes
do não reconhecimento de um território
aos Guarani. Ontem foram os casos de Sete Cerros,
Jaguapiré. Hoje é Porto Lindo. Seja
qual for o desfecho deste caso, amanhã teremos
outros ou estes mesmos, revividos. O que temos é
o desdobramento histórico de uma política
antiga e equivocada (que está sendo sabiamente
evitada agora em Roraima), que determinou o esquartejamento
em “ilhas” do território do mais populoso
povo indígena do Brasil. Estamos pagando
e ainda vamos pagar por este “karma”.
Nestes dias em que os brasileiros leitores de jornais
têm sua atenção chamada para
conflitos envolvendo índios na fronteira,
em Roraima e Mato Grosso do Sul, mereceriam melhor
informação para perceber que os dois
casos têm sinais trocados: em Roraima, a solução
está próxima; mas em Mato Grosso do
Sul, o governo federal terá que penar muito
para evitar o agravamento da crise na fronteira.
O denso processo de ocupação colonial
dificulta ao extremo a plena aplicação
dos direitos territoriais previstos no artigo 231
da Constituição Federal. Ou haverá,
no futuro, uma solução de estadista
capaz de recorrer a alguma providência de
maior envergadura para resgatar os Guarani-Kaiowá
dessa tragédia histórica, como quando
há 40 anos foi criado o Parque Nacional do
Xingu, ou o país terá de suportar
uma sucessão virtualmente interminável
de casos como o de Porto Lindo, com a mídia
sempre esquecendo dos anteriores, como se cada um
fosse expressão de um novo conflito.
Fonte: ISA – Instituto Sócioambiental
(www.socioambiental.org.br)
Márcio Santilli