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ÍNDIOS DO RIO XIÉ
QUEREM LEVAR PRODUTOS DE PIAÇAVA
AO MERCADO JUSTO
Panorama
Ambiental
São Paulo (SP) – Brasil
Julho de 2005
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06/07/2005 - Os
povos indígenas do rio Xié, na bacia
do rio Negro, decidem investir na produção
de artefatos de piaçava para evitar a desvalorização
da matéria-prima nos negócios com
comerciantes regionais, aumentar a autonomia das
comunidades, a renda dos artesãos e contribuir
para proteger a biodiversidade amazônica.
O Curupira é considerado pela maioria dos
habitantes da Amazônia como o dono ou o guardião
da floresta. Na mitologia do povo indígena
Werekena, que habita o rio Xié, na bacia
do rio Negro, extremo noroeste da Amazônia
brasileira, o Curupira recebeu este poder de um
ser ancestral chamado Napirure. Ao morrer, Napirure
lhe delegou a missão de cuidar de todos os
animais e plantas presentes na natureza. “Ele era
o nosso Deus. Ensinava-nos tudo: como benzer, tipos
de remédios, danças, enfeites” conta
o werekena Luís Cândido. “Antes de
morrer, Napirure foi tirando pêlos do seu
próprio corpo e plantando-os na floresta.”
O artesanato de piaçava
é uma tradição entre os povos
do Xié, que remetem à planta os poderes
do Curupira
Segundo os Werekena
do rio Xié, de cada parte do corpo de Napirure,
brotou uma variedade de vida – planta ou animal.
Existiam plantas “para o bem”, como as medicinais,
e outras “para o mal”, as venenosas. Dentre essas,
nasceu a piaçabeira (Leopoldinia piassaba),
cujo tronco é densamente revestido por fibras
– grossas como os cabelos do Curupira. Daí
o nome popular “piaçava”, que significa “pêlos
que saem de dentro do coração da árvore”.
E, assim, o Curupira se tornou também o “dono”da
piaçava.
Por muitos anos a
piaçava foi utilizada pelos povos do rio
Xié, como os Werekana e os Baré, como
matéria-prima para a produção
de vassouras e cordames. Com a chegada das fibras
de nylon nos anos 30, os índios passaram
a negociar a piaçava bruta na troca por produtos
industrializados trazidos pelos regatões,
os barcos que navegam pelos rios da Amazônia
como entrepostos comerciais ambulantes. O problema
é que nos últimos anos o preço
de mercado da piaçava bruta vem decaindo,
gerando o endividamento progressivo daqueles que
dependem de sua comercialização para
adquirir insumos e produtos industrializados trazidos
pelos regatões. E agravou ainda mais a relação
de dependência - próxima à semi-escravidão
– dos extrativistas da piaçava com os comerciantes
que, por sinal, é um fato antigo na região
do rio Xié (ver box).
Extrair a piaçava
não é tarefa fácil: os trabalhadores
ficam semanas longe de casa e enfrentam cobras e
escorpiões
Diante destas mudanças,
as comunidades indígenas da região
estão apostando na valorização
do produto artesanal da piaçava. A idéia
é conseguir escoar a produção
das aldeias sem intermediários que não
sejam as próprias organizações
indígenas. E, portanto, conseguir preços
justos para que a atividade seja economicamente
interessante aos artesãos. O primeiro passo
nessa direção foi dado entre os dias
26 e 29 de junho, quando a Associação
das Comunidades Indígenas do rio Xié
(Acirx) realizou uma Oficina de Mestres Artesãos
na aldeia Tunum e reuniu cerca de 20 artesãos
e artesãs indígenas. A oficina contou
com o apoio do Instituto Socioambiental (ISA), da
Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro (Foirn) e da Coordenadoria
Regional do Alto Rio Negro e Xié (Caiarnx).
Os participantes
da oficina definiram linhas de produto e indicadores
de qualidade
O encontro marca
o início de uma nova relação
entre a produção tradicional da piaçava
e o mercado regional, deixando para trás
o modelo no qual a matéria-prima era extraída
sem manejo e sem valor agregado para um novo padrão,
com produtos artesanais ricos em histórias,
que possa fortalecer a associação
indígena que gerencia o processo, gerar renda
aos artesãos e suas comunidades e contribuir
para proteger a biodiversidade amazônica.
“Fazer e vender a vassoura é melhor do que
as toneladas de piraíbas que vendíamos
para o regatão”, diz Renato Tomas, artesão
werekena de São José. Piraíba
é um conjunto de fibras amarradas em forma
cônica, que se assemelha ao peixe homônimo
típico da região.
Produtos
de piaçava expostos durante a oficina: comunidades
serão fortalecidas ao agregar valor cultural
Durante os três
dias de trabalho, o grupo mostrou sua coleção
de produtos, discutiu o manejo adequado das plantas
e definiu a “linha de produtos” que será
oferecida ao mercado, além de tamanhos, preços
e indicadores de qualidade. E optou pela feitura
de vassouras e suportes de panela chamados de “peito
de arraia”. As primeiras são delicadamente
trançadas na parte superior e amarradas com
cipó-titica, jacitara ou com fio de tucum
- outras palmeiras típicas da região
amazônica - protegido com breu, para dar mais
durabilidade e flexibilidade ao fio. Podem ser usadas
para varrer lareiras ou na decoração.
Os suportes são feitos em três tamanhos,
formando um conjunto único para venda.
Inicialmente os produtos
serão vendidos na Wariró - Casa de
Produtos Indígenas do Rio Negro, um espaço
criado pela Foirn para valorizar o trabalho dos
artesãos indígenas rio negrinos e
abrir novos canais para a comercialização.
O objetivo é primeiro fortalecer a organização
da produção para depois oferecer o
produto aos grandes centros consumidores. Com o
apoio do ISA, estão sendo feitos testes de
mercado e em breve os produtos serão acompanhados
por livrinhos de bolso contando a sua história
e por etiquetas com logomarca do projeto.
"Nós
nunca saímos das mãos deles"
O sistema de trocas
com os regatões – como são conhecidos
os comerciantes ambulantes fluviais que fornece
mercadorias, muitas vezes a preços extorsivos,
em troca de produtos locais - é uma das práticas
mais antigas no uso e comércio de recursos
naturais da Amazônia. Suas conseqüências
também são bastante conhecidas. Freqüentemente,
o sistema promove um aviamento dos moradores de
comunidades distantes de centros urbanos, como é
chamado o endividamento permanente de indíviduos.
O antropólogo
Márcio Meira tratou do tema em profundidade
em sua tese de mestrado chamada “O Tempo dos Patrões
– Extrativismo da Piaçava entre os Índios
do Rio Xié (Alto Rio Negro). No estudo, publicado
em 1993, Meira vai além e diz que a atividade
extrativista pelos índios no rio Xié
se assemelha à semi-escravidão “...na
medida em que a piaçava representa, juntamente
com o cipó, no único recurso natural
cuja comercialização permite o acesso
daquela população a alguns ítens
industrializados de que necessitam...”.
Parte do problema
reside na negociação injusta entre
os produtos trazidos pelos barcos – cujos preços
são até 150% mais caros do que em
relação aos praticados em Manaus -
e aqueles oferecidos pelos moradores ribeirinhos,
geralmente depreciados pelos comerciantes. Os regatões
controlam o fluxo de mercadorias, definem preços
e raramente agregam o valor justo aos produtos ofertados
pelos povos índigenas.
A extração
da piaçava, por exemplo, é uma atividade
perigosa e que exige cuidados importantes. Não
pode ser feita sem que o artesão tenha à
mão um pedaço de pau para espantar
os animais peçonhentos que se escondem entre
as fibras da árvore – como piolhos, jararacas,
escorpiões, entre outros. O trabalho é
árduo e requer tempo e cautela – os piaçabais
geralmente ficam distantes das aldeias e a atividade
pode durar semanas.
Segundo os índios,
nada disso é levado em conta pelos comerciantes.
“Há muita exploração. Com uma
dúzia de vassouras, se compra um fardo de
sal. Para comprar uma rede, são necessárias
duas dúzias", revela o artesão
Nazildo, da comunidade de Anamoim, que produz, junto
com a esposa, até sete vassouras por dia.
"É uma coisa muito difícil porque
os regatões costumam deixar fiado e nós
nunca saímos da mão deles".
Fonte: ISA – Instituto Socioambiental
(www.socioambiental.org.br)
Assessoria de imprensa (Natalie Unterstell e Carla
de Jesus Dias)