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TITULAÇÃO
DE QUILOMBOS EMPERRA DIANTE DE PRESSÕES
DO AGRONEGÓCIO, RACISMO E FALTA DE
VONTADE POLÍTICA
Panorama
Ambiental
São Paulo (SP) – Brasil
Julho de 2005
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29/07/2005 - Em
dois anos e meio, foram concedidos apenas dois títulos
de terra. Governo federal diz que reformulou a legislação
e precisou criar novas estruturas administrativas.
Movimento quilombola cobra mais agilidade.
São dois anos
e sete meses. Mais precisamente: 941 dias de governo
Lula. E apenas dois territórios quilombolas
receberam seus títulos de terra. Em 16 anos,
desde a Constituição de 1988, o Estado
brasileiro expediu cerca de 70 títulos semelhantes.
Neste ritmo, seriam necessários aproximadamente
33 anos para finalizar os 144 processos de titulação
hoje em tramitação no Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária
(Incra). Sem contar outros em curso em órgãos
fundiários estaduais.
Não é
possível fazer um cálculo exato sobre
o tempo que seria preciso, no compasso observado
até agora, para regularizar os territórios
quilombolas restantes, em todo o País, porque
os dados disponíveis sobre o assunto são
imprecisos. Mesmo assim, não custa lembrar
que, segundo levantamento feito, neste ano, pelo
Centro de Cartografia Aplicada e Informação
Geográfica (Ciga) da Universidade de Brasília
(UnB), existiriam hoje, no Brasil, 2.228 comunidades
quilombolas, totalizando uma população
de mais de 2,5 milhões de pessoas.
Em relação
à administração Lula, as explicações
para tanta morosidade apontam para o que já
parece ser um de seus traços característicos:
uma enorme dificuldade em vencer obstáculos
político-administrativos diante de uma conjuntura
marcada pela predominância de forças
conservadoras dentro e fora do governo. Em todo
caso, do ponto de vista da sociedade civil, duas
titulações em dois anos e meio de
mandato soam como um resultado irrisório
para quem prometia retomar o resgate da dívida
social e cujo partido (PT) abriga grande parte da
militância negra.
Organizações
quilombolas e especialistas consideram que falta
determinação ao governo para atacar
o preconceito racial, enfrentar o poder dos ruralistas
e acelerar os processos de regularização
fundiária. A administração
federal não teria sido capaz nem mesmo de
colocar em prática uma política pública
unificada de teor étnico e de realizar um
censo populacional. Por outro lado, o Ministério
do Desenvolvimento Agrário (MDA) argumenta
que foi preciso idealizar e implantar toda uma estrutura
operacional que não existia para reconhecer
as terras quilombolas e reformular a legislação
sobre o tema. Além disso, a titulação
seria tão complicada e lenta quanto a criação
de Terras Indígenas e muitos processos estariam
sendo refeitos.
“Para os quilombolas,
assim como para outras populações
tradicionais, o direito às suas terras é
o mais fundamental de todos. Sem ele não
há moradia, saúde, segurança
alimentar ou preservação da cultura”,
lembra Raul Silva Telles do Valle, advogado do ISA.
Ele considera que qualquer política voltada
aos remanescentes de quilombos deveria centrar-se
nesse aspecto sob pena de não alcançar
seus objetivos.
Governo diz
que trabalha, mas não gasta
Um dos dados que
mais chama a atenção em relação
às ações do governo Lula para
o setor é o baixíssimo índice
de execução orçamentária,
especialmente no que diz respeito às titulações.
Segundo o boletim Orçamento & Política
Socioambiental, de junho, publicação
do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc),
dos R$ 11,6 milhões previstos no orçamento
do MDA de 2004 para o pagamento de indenizações
aos ocupantes de boa-fé de terras quilombolas,
nenhum centavo foi pago. Este ano, também
não se gastou nada do orçamento de
R$ 14,4 milhões para o mesmo fim. Dos R$
2,3 milhões previstos, em 2004, na rubrica
“Reconhecimento, Demarcação e Titulação”,
foram usados R$ 1,4 milhão, pouco mais de
62%. Para este ano, estavam destinados R$ 5,4 milhões
para a mesma rubrica e, até o momento, foram
gastos cerca de R$ 432 mil, em torno de 8% do total.
Em relação
ao total de recursos disponibilizados pelo governo
federal para os quilombolas, no ano passado, foram
usados apenas 50% dos R$ 51 milhões que deveriam
ser gastos por seis ministérios, pela Presidência
da República e pela Secretaria Especial de
Promoção de Políticas para
a Igualdade Racial (Seppir) no âmbito de programas
como o Brasil Quilombola, Cultura Afro-brasileira
e Comunidades Tradicionais. Dos R$ 60,1 milhões
previstos para este ano, apenas R$ 7,5 milhões,
12,5% do total, foram utilizados até este
mês.
“A execução
orçamentária não reflete o
trabalho que temos realizado”, defende Mozar Artur
Dietrich, assessor especial do MDA para a questão
quilombola. Ele explica que o governo ainda não
chegou à fase de usar o dinheiro das indenizações
e avisa que, pelo mesmo motivo, o gasto da rubrica
pode continuar na estaca zero este ano. Dietrich
insiste no argumento de que o governo Lula levou
mais de um ano para refazer a legislação
sobre o tema e transferir para o Incra a responsabilidade
pela titulação.
“Estamos implantando
todo um procedimento legal e administrativo inédito.
Vamos contratar novos funcionários. Já
temos 144 processos em andamento relativos a 278
comunidades. Quem disser que isso é menos
do que foi feito no governo Fernando Henrique não
conhece os procedimentos da área”. A gestão
FHC concedeu 14 títulos aos quilombolas,
mas todos estariam em áreas públicas,
onde não existiriam conflitos fundiários.
O assessor do MDA
explica que, em virtude da complexidade das titulações
quilombolas, não é possível
estabelecer uma meta de terras regularizadas para
o final do governo Lula. “Tenho me recusado a estabelecer
uma meta. Estamos falando de um procedimento semelhante
àquele das Terras Indígenas. É
impossível a Funai [Fundação
Nacional do Índio] dizer que vai homologar
uma área em um certo tempo porque ocorrem
ações judiciais contrárias,
conflitos locais, ocupações do movimento
social etc”, explica Dietrich. Ele não considera
que as duas titulações realizadas
até agora na administração
petista sejam um número baixo.
Agronegócio
e racismo pressionam terras
O antropólogo
Alfredo Wagner Berno de Almeida, especialista na
questão quilombola há vários
anos e responsável pela análise publicada
pelo Inesc, admite que o processo de titulação
dos quilombos é bastante burocratizado e
defende procedimentos mais ágeis. Ele julga,
no entanto, que outros fatores externos também
contribuem para a inércia do Estado em reconhecer
as terras quilombolas. “Além dos obstáculos
burocráticos, temos os interesses do agronegócio
e o racismo da sociedade brasileira”.
Almeida deverá
divulgar em breve um levantamento a respeito do
avanço da agropecuária e de outras
atividades como a mineração e a indústria
do papel sobre territórios tradicionais em
várias regiões do País, incluindo
Terras Indígenas, quilombos e outras áreas
de uso coletivo, como os chamados “fundos de pasto”
e as “terras soltas”.“A força destas ocupações
centenárias está erodindo diante do
agronegócio. A elevação geral
do preço das commodities e a ação
da indústria madeireira estão levando
a uma ocupação e a uma valorização
muito rápida das terras em todo o Brasil”.
O antropólogo avalia que o fenômeno
tem feito aumentar as pressões pelo não
reconhecimento dos territórios tradicionais,
em especial no norte do Tocantins, no sul do Maranhão,
no oeste da Bahia e de Pernambuco. As commodities
são produtos primários - como a soja,
o café, a carne e o minério de ferro,
por exemplo - cujos preços e o comércio
em geral são determinados pelo mercado internacional.
A opinião
do pesquisador está apoiada em estatísticas
conhecidas. Segundo informações da
empresa de consultoria FNP, especializada em estudos
sobre angronegócios, nos últimos 36
meses (até junho de 2005), o preço
médio das terras no País registrou
taxa de crescimento de 63%, muito acima da inflação
acumulada de 49% no mesmo período (IGP-DI).
No Centro-Oeste, houve um pico de valorização
de 122%, no acumulado dos últimos 12 meses.
“Existem forças
conservadoras que se movimentam o tempo todo para
criar obstáculos ao reconhecimento dos direitos
dos quilombolas”, continua Almeida. Ele cita a Ação
Direta de Inconstitucionalidade (Adin) proposta
pelo PFL, em julho de 2004, contra o Decreto nº
4.887/03, que atualmente regulamenta a titulação
dos quilombos, como um exemplo da força do
racismo na sociedade brasileira e de uma conseqüente
negação da propriedade aos negros.
“Isso se reflete também nas pessoas que estão
no aparato do Estado. Não existe uma predisposição
para fazer, mas uma inclinação para
colocar problemas e dificultar a vida de quem quer
fazer”. Neste ponto, o antropólogo refere-se
especialmente às dificuldades impostas à
ação dos funcionários do Incra
na ponta do sistema, ou seja, nas menores cidades
do interior e nos confins do País, onde o
poder dos fazendeiros é maior.
Vários setores
do movimento quilombola crêem na boa vontade
da cúpula do governo, em especial do presidente
Lula e de alguns ministros, como Miguel Rosseto
(MDA) e a chefe da Seppir, ministra Matilde Ribeiro.
Os mesmos segmentos concordam, porém, que
falta determinação para enfrentar
os entraves burocráticos e as pressões
dos grupos conservadores.
“Ganhamos o governo,
mas não ganhamos o poder. Falta interesse
político não só do presidente,
mas de todas as instâncias”, resume Ivo Fonseca
Silva, integrante da Coordenação Nacional
de Quilombos (Conaq) e da Associação
das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão
(Aconeruq). Ele também não aceita
a opinião, defendida pelos técnicos
do MDA, de que as dificuldades administrativas e
legais seriam o principal obstáculo para
a regularização dos quilombos. Silva
garante que existem hoje, no País, mais de
cem territórios cujos processos já
estão finalizados e só aguardam a
autorização do governo para receber
a titulação.
“Hoje, a questão
quilombola é prioritária no Incra,
mas não é mais importante – 99% da
demanda é para os sem-terra. Não estou
dizendo que os quilombolas devam acampar. Mas os
sem-terra acampam até no Palácio do
Planalto”, admite Cláudio Rodrigues Braga,
responsável pela Coordenação-geral
de Regularização Fundiária
de Áreas Remanescentes de Quilombos, que
já funciona na prática, mas ainda
aguarda a assinatura de um decreto para passar a
existir formalmente na estrutura do Incra. Braga
também bate na tecla da complexidade do processo
de regularização fundiária
dos quilombos para sugerir que a lentidão
observada até agora é normal (saiba
como é a titulação).
“Tinha-se a idéia
de que a regularização dos quilombolas
seria rápida. A Seppir, o Ministério
Público e o movimento quilombola diziam isso.
Ainda se diz que o ministro Rosseto não tem
vontade política. Não concordo. Parte
da responsabilidade também é da sociedade
civil, que não se mobilizou durante muito
tempo após a Constituição de
1988 e não cobrou do governo anterior”, rebate
Mozar Artur Dietrich. Segundo o assessor, mais de
90% dos territórios quilombolas do País
estão localizados em áreas que já
têm pretensos proprietários, ou seja,
que provavelmente irão demandar batalhas
judiciais demoradas. Ele volta a frisar que, como
o Incra nunca participou do processo de titulação,
foi preciso praticamente recomeçar do zero.
Demora em
colocar a máquina em ação
De fato, o governo
Lula levou quase um ano para substituir o Decreto
nº 3.912/01, que regulamentava até então
o processo de titulação, mas era recheado
de equívocos. Na verdade, impunha condições
que, na prática, inviabilizava a regularização
das terras quilombolas. A norma nem mesmo previa
indenizações para os posseiros de
boa-fé. Em 20 de novembro de 2003, Dia Nacional
da Consciência Negra, o presidente Luís
Inácio Lula da Silva assinou o Decreto nº
4.887, com novas regras para o setor (confira).
Grande parte do movimento
quilombola considera que o Decreto nº 4.887
é um avanço e foi elaborado de forma
democrática: a Seppir realizou uma série
de consultas e debates com vários setores
da sociedade civil organizada para discutir o tema.
Por outro lado, ao deslocar a atribuição
de regularizar as terras da Fundação
Cultural Palmares (FCP), órgão subordinado
ao Ministério da Cultura, para o Incra, provocou
um novo problema administrativo e condicionou sua
solução ao ritmo da burocracia de
Brasília. Em abril de 2004, foi elaborada
a Instrução Normativa interna que
regulamentava os novos procedimentos. Só
em agosto daquele ano, ocorreu o primeiro curso
para os funcionários das Superintendências
Regionais do Incra sobre o tema quilombola.
“Hoje, se saio de
São Luís e vou a Brasília,
eu entro em todos os gabinetes, em todos os ministérios.
Existe mais transparência. As portas estão
abertas para nós. O problema é na
hora de operacionalizar”, aponta Ivo Fonseca Silva.
Ele admite que o problema não será
resolvido rapidamente, mas diz que a sociedade esperava
mais agilidade no trato da questão. “Todos
os governos têm dificuldade para resolver
o problema fundiário. A reforma agrária
que estamos cobrando vai ser lenta, mas é
preciso que o governo tenha mais coragem e diga
‘temos de fazer’”.
Os técnicos
do MDA e do Incra afirmam que os processos devem
se tornar mais ágeis a partir de agora, depois
da consolidação da legislação
e da nova estrutura burocrática. Pelo menos
para 2005, a intenção seria regularizar
a situação de dez comunidades (em
áreas públicas) e reconhecer mais
20. Outra promessa é de contratar por concurso
público, até o final do ano, 136 funcionários,
entre antropólogos, agrônomos, agrimensores
e técnicos para a Coordenação-geral
de Áreas Quilombolas do Incra, que tem, hoje,
seis funcionários em Brasília. Já
teriam sido qualificados outros 110 em todo o País.
Na publicação
do Inesc, o antropólogo Alfredo Wagner de
Ameida aponta uma tendência que não
permite fazer previsões muito otimistas.
O Estado estaria abrindo mão de uma política
étnica integrada e coordenada em benefício
de ações fragmentadas, distribuídas
por vários órgãos diferentes.
Ao mesmo tempo, o foco das políticas públicas
voltadas aos quilombolas estaria sendo deslocado
do atendimento ao direito à terra para iniciativas
de caráter assistencial e, ainda de forma
incipiente, a prestação de serviços
básicos, como eletrificação
e saneamento. Pelo menos no curto e médio
prazo, portanto, o problema fundamental de se enfrentar
as pressões sobre as terras quilombolas estaria
sendo postergado.
Enquanto o Decreto
nº 4.887 é considerado um avanço
na formulação de respostas à
questão quilombola, muitas comunidades continuam
sofrendo com os mesmos problemas de várias
décadas atrás. Além da violência
dos fazendeiros e da discriminação
racial, os remanescentes de quilombos carecem de
escolas, de tratamento médico, de transporte
e de apoio para sua produção agropecuária.
“Nas comunidades
mais isoladas, muitas vezes, temos de carregar pessoas
doentes por mais de 30 quilômetros no lombo
da ‘liteira’ [uma rede pendurada em um tronco de
bambu e apoiada por dois homens]”, explica Manuel
Edeltrudes Moreira, o Tico, secretário de
Promoção da Igualdade Racial de Monte
Alegre, cidade do norte de Goiás, a cerca
de 300 quilômetros de Brasília. Tico
pertence á comunidade Kalunga, cujo território
de 270 mil hectares estende-se pelos municípios
de Monte Alegre, Cavalcante e Teresina de Goiás.
Os Kalunga esperam
na fila das titulações há vários
anos e já chegaram até a receber a
visita do presidente Lula, em março de 2004.
Apesar das promessas, o Incra ainda não terminou
de fazer todos os levantamentos necessários
à finalização do processo de
regularização. A construção
de novas escolas está atrasada e não
há nenhum tipo de atendimento de saúde
especial para os mais de 5 mil quilombolas que vivem
na região.
“Infelizmente, até
o momento, o Decreto nº 4.887 ainda não
foi colocado em prática. Não serviu
para nada”, critica Raul Silva Telles do Valle.
Ele lembra que várias organizações
da sociedade civil, entre elas o ISA, estão
defendendo o instrumento legal no julgamento da
Adin no STF, mas que todo este esforço pode
ser em vão se houver uma nova alteração
na legislação, com uma eventual mudança
de governo, depois de 2006. “Este risco existe.
Por isso toda essa demora pode significar a perda
de uma chance histórica de regularizar boa
parte das terras quilombolas”.
Governador
libera R$ 978 mil para regularização
de quilombos em SP
O governador de São
Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), liberou R$ 978 mil
para o processo de regularização fundiária
das 48 áreas quilombolas existentes no Estado.
Alckmin disse que pretende georreferenciar 24 áreas,
reconhecer 25 e titular outras seis, até
o fim do ano – apenas cinco já receberam
seus títulos de terra. O Instituto de Terras
de São Paulo está realizando a regularização
de territórios quilombolas no Estado.
O anúncio
foi feito no último dia 24 de julho, em uma
visita feita ao quilombo de Caçandoca, em
Ubatuba, no norte do litoral paulista. Em maio,
as 60 famílias de quilombolas que vivem em
Caçandoca sofreram com a ameaça de
despejo provocada por uma liminar de reintegração
de posse concedida à empresa imobiliária
Urbanizadora Continental. No início de junho,
o Tribunal de Justiça de São Paulo
suspendeu a decisão judicial, acatando pedido
do governo estadual (confira).
Fonte: ISA – Instituto Socioambiental
(www.socioambiental.org.br)
Assessoria de imprensa (Oswaldo Braga de Souza)