27/04/2006
- Índios do Alto Juruá, no Acre,
divulgam carta denunciando o uso não
autorizado de seu nome na comercialização
da secreção da perereca Phyllomedusa
bicolor, cuja aplicação tem
sido divulgada nas grandes cidades do País
como uma terapia indígena milagrosa.
Enquanto isso, a substância e suas moléculas
são patenteadas no mundo todo e o governo
federal tenta fazer do kampô um caso
emblemático de repartição
de benefícios associados aos recursos
genéticos da biodiversidade brasileira.
A popularização
do uso da secreção da perereca
kampô (Phyllomedusa bicolor) nas grandes
cidades brasileiras começa a preocupar
os mais antigos detentores deste conhecimento,
os Katukina, povo indígena do Alto
Juruá, no Acre. No começo deste
mês, a Associação Katukina
do Campinas (Akac) divulgou uma carta solicitando
que as pessoas que fazem a prática
comercial da “vacina do sapo”, como a substância
é conhecida, não utilizem o
nome da etnia como forma de “legitimar” a
atividade. A carta é direcionada em
especial a duas terapeutas, uma de São
Paulo e outra de Belo Horizonte, citadas nominalmente
no documento, que estariam valendo-se do nome
da Akac para divulgar a aplicação
da substância e lucrar com isso. No
documento, os Katukina também afirmam
que a comercialização do kampô
trouxe problemas para a comunidade indígena
e pedem que a prática seja encerrada.
Leia aqui a carta na íntegra.
A associação
indígena enviou cópias da carta
aos escritórios da Polícia Federal
e do Ministério Público Federal,
em Rio Branco, e deu vinte dias para que o
uso indevido do kampô em nome dos índios
fosse abandonado. O prazo se encerrou ontem,
26 de abril. “Estamos preocupados porque não
autorizamos ninguém a usar nosso saber.
A polícia e o Poder Judiciário
precisam saber disso”, afirma Fernando Katukina,
vice-presidente da Akac. O líder indígena
esclarece que a preocupação
é em relação ao uso do
nome de seu povo na venda das aplicações
da secreção da jia. “Tem muita
gente se promovendo em cima do nosso povo,
mas nós queremos que o kampô
seja utilizado de forma legal, com respeito
ao nosso conhecimento e sem estimular a biopirataria”.
Os Katukina utilizam a secreção
principalmente como um estimulante capaz de
aguçar os sentidos dos caçadores,
para que a busca por alimento na mata seja
bem-sucedida. Quem sofre de panema (azar na
caça), portanto, é tratado com
aplicações da substância.
A antropóloga Edilene Coffaci de Lima,
da Universidade Federal do Paraná,
uma das maiores estudiosas da etnia, explica
que, fora do contexto da caça, homens
e mulheres Katukina também fazem uso
do kampô. “Desde muito cedo, entre o
primeiro e segundo ano de vida uma criança
começa a receber o kampô, quase
sempre por iniciativa dos avós”, descreve.
A antropóloga afirma
que “este uso moderado é feito para
aliviar indisposições diversas,
como diarréias e febres ou sonolência,
que tiram o ânimo das pessoas para o
desempenho das atividades mais simples. Mas,
ainda que se queira debelar o incômodo
físico que diversas patologias causam,
o uso do kampô é determinado
muito mais pela avaliação moral
que se faz do desânimo que proporcionam.
Afinal, depois de ser recomendado como estimulante
aos caçadores, o kampô é
recomendado àqueles que padecem de
preguiça (tikish)”.
Panacéia
da floresta
Nos últimos anos,
o uso do kampô tem se popularizado entre
a população das grandes cidades
brasileiras como uma milagrosa terapia indígena.
Em folhetos de divulgação, a
substância é classificada como
um poderoso energizante e fortalecedor do
sistema imunológico, uma verdadeira
panacéia, capaz de tratar doenças
do coração em geral, hepatite,
cirrose, infertilidade, impotência,
depressão, entre outras enfermidades.
De acordo com o material de divulgação,
o kampô seria eficaz até mesmo
no tratamento de câncer e AIDS. Cada
aplicação da secreção
do anfíbio – feita sobre pequenas feridas
abertas na pele do usuário a partir
de queimaduras - custaria até R$ 120,00.
A popularização do kampô
também se valeu de inúmeras
reportagens em televisão e revistas,
produzidas a partir da experiência de
jornalistas que se submeteram aos efeitos
da substância. A maioria dos narradores
descreve que, após receber a aplicação
do kampô, sente em poucos minutos um
forte mal-estar, acompanhado geralmente de
vômitos. Em seguida, o kampô provocaria
uma sensação de revitalização
de todo o organismo e aguçamento dos
sentidos.
Em 2004, o uso indiscriminado
da secreção cresceu tanto que
a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) proibiu sua propaganda,
que vinha sendo feita principalmente na internet.
Meses antes, em abril de 2003, as lideranças
da Terra Indígena Campinas/Katukina
já haviam solicitado oficialmente ao
governo federal que tomasse providências
para proteger e valorizar o uso tradicional
do kampô pelos índios. Além
dos Katukina, os Yawanawá, Kaxinawá
e Marubo, entre outros povos indígenas,
também têm no kampô um
elemento cultural importante. A demanda dos
Katukina levou o Ministério do Meio
Ambiente (MMA) a elaborar um projeto para,
a partir do caso do kampô, aprimorar
o acesso aos recursos genéticos da
biodiversidade brasileira e a repartição
de benefícios aos detentores dos conhecimentos
tradicionais associados.
Moléculas
patenteadas
O projeto conta com diversas
parcerias governamentais e não-governamentais
e também tem, entre seus objetivos,
“contribuir para a estruturação
sustentável da cadeia produtiva da
‘vacina do sapo’, promovendo estudos dos efeitos
da aplicação da substância
sobre a sustentabilidade sociocultural e ambiental,
com vistas a se iniciar um processo que contribua
para a análise da possibilidade de
validação do uso não-tradicional
e a proteção do uso tradicional
desse etnofármaco”, conforme texto
do próprio ministério. Em outras
palavras, o projeto visa combater a biopirataria
do kampô e desenvolver pesquisas que
resultem em medicamentos a partir da secreção
daquele anfíbio. Segundo levantamento
feito pela ONG Amazonlink, existem dez pedidos
de patentes sobre a Philomedusa Bicolor feitos
por laboratórios, universidades ou
centro de pesquisas em escritórios
de patentes no exterior.
Um dos coordenadores do
projeto, Bruno Filizola, do Programa Brasileiro
de Bioprospecção e Desenvolvimento
Sustentável de Produtos da Biodiversidade
(Probem), do MMA, afirma que a secreção
da perereca tem cerca de 200 moléculas
com potencial comercial e que existem pelo
menos 80 pedidos de patente sobre o gênero
Philomedusa, em escritórios de patentes
no mundo todo. Os registros recaem principalmente
sobre moléculas com potencial antimicrobiano.
A própria Empresa Brasileira de Pesquisa
e Agropecuária (Embrapa), que faz parte
do projeto governamental sobre o Kampô,
tem a patente de uma outra espécie
de sapo, cuja secreção também
tem propriedades com potencial para a produção
de medicamentos.
Alguns pesquisadores da
Embrapa, inclusive, não reconhecem
que existe conhecimento tradicional associado
ao uso do kampô. Argumentam que a “ciência”
já havia chegado ao conhecimento sobre
as propriedades do gênero Philomedusa,
independentemente do conhecimento dos índios
do Acre. “Realmente muitos cientistas ainda
não internalizaram os princípios
da CBD (Convenção da Biodiversidade)”,
reconhece Filizola. A CBD prevê a repartição
de benefícios do acesso aos recursos
genéticos da biodiversidade aos detentores
de conhecimentos tradicionais associados a
estes recursos. “A transformação
deste bem cultural dos índios em bem
de mercado certamente vai gerar impactos nas
comunidades indígenas. Por isso queremos
viabilizar a cadeia produtiva do kampô”,
diz Bruno Filizola.
O advogado do ISA, Fernando
Mathias, questiona a eficácia do projeto
do governo brasileiro em um caso no qual “a
biopirataria já se consumou”. “O que
o governo vai fazer em relação
às patentes que já existem?
Esse passivo vai ser objeto de negociação
entre os índios e as empresas? Vai
haver espaço para discutir a quebra
ou ao menos a abertura das patentes já
concedidas ou os índios vão
apenas receber um troco em troca da privatização
de seus conhecimentos e do patrimônio
genético brasileiro?”, pergunta. “Se
o que de fato prevalece neste e outros casos
são os interesses das corporações
transnacionais farmacêuticas, este projeto
do governo corre o risco de não passar
de uma cortina de fumaça no campo da
repartição de benefícios”.