29/08/2006
- A Cachoeira de Iauaretê, localizada
no rio Uaupés, região do Alto
Rio Negro (AM), será registrada no
Livro dos Lugares do Programa Nacional do
Patrimônio Imaterial, do Ministério
da Cultura. Anunciado no começo de
agosto pelo Iphan, o registro marca mais uma
etapa no processo de revitalização
cultural promovido por lideranças indígenas
da região, que inclui também
a reconstrução de malocas, a
retomada de práticas rituais nas comunidades
e a implementação de escolas
indígenas, entre outras iniciativas.
No começo de agosto
o Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (Iphan) anunciou
o registro da Cachoeira de Iauaretê,
na região do Alto Rio Negro (AM), no
Livro dos Lugares do Programa Nacional do
Patrimônio Imaterial, do Ministério
da Cultura (Minc). O local, um trecho do rio
Uaupés considerado sagrado pelos povos
Tariano e Tukano, bem como por outras etnias
que vivem em Iauaretê, passa assim a
ser o nono patrimônio imaterial brasileiro,
o primeiro a ser registrado no Livro dos Lugares
– os demais patrimônios imateriais estão
descritos nos livros dos Saberes, das Celebrações
e das Formas de Expressão. Saiba mais
sobre o Programa Nacional do Patrimônio
Imaterial.
As pedras e demais formações
da Cachoeira de Iauaretê têm significado
fundamental de acordo com os mitos de origem
dos povos indígenas que vivem na região
de Iauaretê, distrito do município
de São Gabriel da Cachoeira (AM), no
extremo noroeste brasileiro, onde vivem cerca
de quatro mil pessoas. As pedras que formam
as corredeiras do rio Uaupés são
especialmente importantes aos Tariano, uma
das etnias mais numerosas do povoado. “Grande
parte da toponímia de Iauaretê
refere-se às transformações
de Okomi, um dos seres do começo dos
tempos que foi devorado pela gente-onça.
Os Tariano referem-se a ele como ‘nosso avô’,
pois seriam seus descendentes em linha direta”,
resume Geraldo Andrello, antropólogo
do ISA. Saiba mais.
A qualificação
da Cachoeira de Iauaretê como patrimônio
imaterial brasileiro foi fundamentada por
um dossiê técnico e um vídeo
feitos a partir do registro das narrativas
indígenas associadas aos diferentes
pontos da cachoeira. O trabalho, realizado
pelo ISA em parceria com Iphan, Federação
das Organizações Indígenas
do Rio Negro (Foirn) e ONG Vídeo nas
Aldeias, contou com a participação
direta de lideranças Tariano e Tukano
que, ao longo de dez dias do mês de
fevereiro de 2005, relataram em versões
detalhadas seus mitos de origem no local onde
eles teriam ocorrido.
Não o fim,
mas o começo
O registro da Cachoeira
de Iauaretê encerra um processo iniciado
há dois anos, quando o Iphan esteve
em São Gabriel da Cachoeira para explicar
às lideranças indígenas
regionais a política do governo federal
de registro dos chamados “bens culturais de
caráter imaterial” e discutir a inserção,
nesta política, do patrimônio
cultural dos povos do Alto Rio Negro. Mais
do que um ponto final, porém, o registro
da Cachoeira de Iauaretê como patrimônio
imaterial brasileiro significa o início
de uma nova etapa no movimento de revitalização
cultural conduzido pelos Tariano, Tukano e
demais etnias de Iauaretê.
Isso porque o registro da
Cachoeira de Iauaretê no Livro dos Lugares
vem se somar a uma série de ações
realizadas ou planejadas por algumas lideranças
indígenas de Iauaretê com o objetivo
de fortalecer a cultura local. O processo
de revitalização cultural, por
sinal, faz parte de um movimento maior, em
curso já há alguns anos em toda
a região do Alto Rio Negro. Ele consiste
em diversas iniciativas, como a reconstrução
de malocas (as grandes moradias do passado
que eram também centro da vida cerimonial),
a retomada de práticas rituais em desuso
por várias décadas nas comunidades
indígenas, bem como a implementação
de escolas indígenas com projetos político-pedagógicos
diferenciados (com destaque para utilização
das línguas indígenas nas salas
de aula).
No bojo destes projetos,
vários materiais didáticos e
para-didáticos também foram
elaborados, com destaque para a coleção
"Narradores Indígenas do Rio Negro",
editada pelo ISA e pela Foirn, que já
conta com oito volumes publicados, e apresenta
versões das mitologias de origem do
mundo e da humanidade segundo a visão
das etnias locais.
Com o apoio do governo federal
– agora confirmado com o registro da Cachoeira
de Iauaretê – novas perspectivas se
abrem para os povos envolvidos. Isso porque
o registro da cachoeira implica em posteriores
“ações de salvaguarda” do patrimônio
imaterial, inclusive com o aporte de recursos
para o fortalecimento das iniciativas. Entre
elas, destaca-se a utilização
dos relatos sobre o significado das pedras
e formações da cachoeira – arquivados
em DVDs – como ferramenta de aprendizagem
na escola Tariano de Iauaretê, de modo
a incrementar a transmissão do conhecimento
ancestral da etnia para as novas gerações.
As lideranças de
Iauaretê também planejam publicar
um livro registrando seus mitos de origem
e a história recente do povoado e de
suas populações – tema que inclusive
já foi objeto de uma pesquisa preliminar
conduzida pelo ISA. A promoção
de oficinas de construção de
malocas e o inventário de sítios
arqueológicos nos arredores de Iauaretê
também estão previstos.
Ornamentos recuperados
Outra iniciativa importante
refere-se ao desejo dos Tariano e Tukano,
e de demais etnias de Iauaretê, em reaver
alguns ornamentos e enfeites de seus antepassados
atualmente guardados no Museu do Índio
de Manaus, muitos deles arquivados na reserva
técnica do museu e não expostos
ao público. Estes objetos sagrados
foram obtidos pelo estabelecimento, de acordo
com seus administradores, por doação
e em troca de artefatos e mercadorias como
espingardas, sabão, material fotográfico
e roupas.
A idéia dos índios
é transferir um pequeno conjunto de
peças do museu para a maloca Tariano
inaugurada no final de 2005 em Iauaretê,
que é o mais novo local para a realização
de atividades culturais e educativas do distrito.
Com a repatriação das peças
a maloca passaria a se constituir como um
“museu vivo”, contribuindo para o que os alunos
das escolas de Iauaretê tenham acesso
a importantes aspectos do patrimônio
cultural de suas etnias.
A intenção
de repatriar as peças veio à
tona em novembro do ano passado, quando lideranças
Tariano e Tukano visitaram o museu em Manaus
e elegeram os objetos a serem recuperados
pelos povos de Iauaretê. O processo
de repatriação das peças
vem sendo gerido pelo Iphan, que nos próximos
meses deve apresentar ao Museu do Índio
um Termo de Repatriação que
prevê a correta transferência
dos enfeites para a maloca de Iauaretê,
assim como sua guarda e conservação.
Um lastro para as
novas gerações
O movimento de revitalização
cultural no Alto Rio Negro pode ser entendido
como uma reação das lideranças
indígenas mais antigas ao progressivo
distanciamento dos jovens em relação
a suas tradições culturais.
Esse distanciamento, que resulta de programas
de catequese e "civilização",
operados pelo Estado e missões religiosas
ao longo de mais de dois séculos de
contato, é hoje agravado por um movimento
de concentração das famílias
indígenas nos centros urbanos do Alto
Rio Negro – principalmente Iauaretê
e São Gabriel da Cachoeira –, em busca
de educação continuada, renda
e outros serviços públicos.
Esse movimento tem implicado,
para os mais jovens, em um desconhecimento
de certas referências culturais mais
associadas ao estilo de vida comunitário.
O processo é apontado pelos mais antigos
como uma das causas dos recorrentes problemas
sociais detectados nos núcleos urbanos
regionais, envolvendo jovens indígenas,
como os confrontos violentos entre gangues,
casos de estupro e de alcoolismo.