15/11/2006 - Mesmo que
ainda não seja possível relacionar
diretamente eventos específicos como
tornados ou inundações às
grandes alterações observadas
no clima planetário, especialistas
como o pesquisador Antonio Nobre acreditam
que não dá mais para esperar
por comprovações inequívocas
sobre as causas de certos fenômenos.
E acha que os cientistas têm a obrigação
de alertar a sociedade sobre os problemas
ambientais. Representante do Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia (Inpa) no Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Nobre
é autor de um trabalho que demonstra
que a Amazônia é um sistema auto-regulado
capaz de capturar umidade do Oceano Atlântico
para manter a estabilidade do clima e do regime
de chuvas da América do Sul a leste
dos Andes. Doutor em Biogeoquímica,
ele explica na entrevista que se segue que
é necessário não apenas
suspender o desmatamento na floresta amazônica,
mas começar a recuperá-la imediatamente
sob pena de incorrermos no que considera um
“custo impagável” para as populações
do continente.
Desde o final dos anos 1980,
não resta dúvida de que a poluição
lançada na atmosfera principalmente
pelos países ricos está contribuindo
para o aquecimento do planeta. Também
já se tem certeza do aumento da frequência
de eventos climáticos extremos para
as próximas décadas. Outro ponto
pacífico é o de que o desmatamento
nos países pobres também contribui
de forma significativa para as emissões
de carbono, um dos principais responsáveis
pelo efeito-estufa. Com base nas evidências
de que as florestas tropicais também
têm papel importante na estabilidade
do clima, o governo brasileiro apresentou
uma proposta de redução do desmatamento
a ser compensada com recursos dos países
ricos, durante a 12ª Conferências
das Partes sobre a Convenção
de Clima, que está acontecendo neste
mês de novembro, no Quênia. É
consenso na comunidade internacional de que
há indícios suficientes para
afirmar que já estaríamos vivendo
os efeitos das mudanças climáticas.
Apesar de tudo disso, um
dos argumentos usados pelo governo dos Estados
Unidos para ficar de fora do Protocolo de
Kyoto, tratado internacional sobre o tema,
é de que não se tem certeza
científica sobre a contribuição
do aumento da temperatura da Terra para vários
dos desastres “naturais” ocorridos nos últimos
anos em locais inesperados, como as seguidas
ondas de calor na Europa, a seca prolongada
na Amazônia e a seqüência
de furacões na costa do Caribe, entre
outros. O discurso leva em conta que os modelos
matemáticos usados pelos meteorologistas
são elaborados com base em séries
históricas sobre o comportamento médio
da atmosfera no passado e não são
capazes de prever episódios climáticos
específicos. Na verdade, o governo
de George W. Bush já chegou a defender
em alguns debates que não haveria certeza
nem mesmo da contribuição da
poluição para as alterações
no clima.
Nobre: o clima está em mudança
de maneira acelerada. O desmatamento tinha
de ser zero pelo menos já há
dez anos.
De fato, ainda não é possível
relacionar diretamente eventos específicos,
como inundações e tornados,
com as grandes alterações pelas
quais passa o clima. Apesar disso, vários
especialistas começam a assumir uma
postura mais ativa no debate sobre o assunto
tendo em vista as possíveis conseqüências
catastróficas do aquecimento planetário.
No Brasil, o pesquisador Antônio Nobre
é um dos que acredita que não
há mais tempo para esperar por comprovações
inequívocas sobre as causas de certos
fenômenos e cobra dos cientistas a obrigação
de alertar a sociedade sobre os problemas
ambientais. Representante do Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia (Inpa) no Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Nobre
é autor de um trabalho que demonstra
que a Amazônia é um sistema auto-regulado
capaz de capturar umidade do Oceano Atlântico
para manter a estabilidade do clima e do regime
de chuvas da América do Sul a leste
dos Andes. Doutor em Biogeoquímica,
ele acredita que é necessário
não apenas suspender o desmatamento
na floresta amazônica, mas começar
a recuperá-la imediatamente sob pena
de incorrermos no que considera um “custo
impagável” para as populações
do continente.
ISA – Há
uma polêmica sobre a capacidade da floresta
amazônica de seqüestrar ou não
carbono. Qual o papel da floresta nesse aspecto?
Antônio Nobre
– Mais importante do que discutir se a floresta
amazônica é uma fonte ou sumidouro
de carbono é que ela regula a quantidade
de gás carbônico da atmosfera.
A quantidade de gás carbônico
na atmosfera regula o clima, a temperatura
do planeta. A temperatura regula todo o ciclo
da água, a evaporação
no oceano, chuvas, transporte de umidade etc.
Existem evidências muito fortes hoje
de que a biosfera – que inclui microorganismos,
plantas, animais, tudo o que é vivo,
inclusive a humanidade – ao longo das eras
geológicas, desde a formação
da Terra, é responsável pela
estabilidade climática do planeta.
Mais do que os fatores geológicos,
geofísicos ou geoquímicos da
superfície.
Então a floresta
amazônica tem um papel importante na
regulação do clima planetário?
Na realidade, se eu fosse
explicar de uma maneira bem simples, eu diria
o seguinte: imagine a superfície de
um lago em que você joga uma pedra.
A pedra produz um impacto, que produz uma
oscilação na superfície,
que se propaga na forma de ondas concêntricas
que chegam até a margem do lago. Aí,
bate lá, reflete e volta, até
que uma parte dela se dissipa. A atmosfera
sofre porque ela é um fluido, o gás
é um tipo de fluido. Ela responde da
mesma forma. Ondas que se propagam na atmosfera
e vão se refletir lá não
sei onde. E esses efeitos, essas propagações
de ondas, de várias perturbações
produzem padrões muito complexos, por
isso que é tão difícil
prever ...
Em relação
às mudanças climáticas,
não é possível prever
eventos e efeitos específicos, como
furacões e secas?
Episódios específicos,
acredito que não. Não sou meteorologista.
As pessoas certas para perguntar isso são
os meteorologistas e eu tenho quase certeza
que eles vão dizer que não é
possível.
Mesmo não
sendo possível especificar esses efeitos
na regulação do clima, no caso
da Amazônia, certamente eles existem?
Existem vários grupos
no mundo [que estudam isso], mas o mais proeminente
é o do Hardley Centre, na Inglaterra,
que fez alguns modelos climáticos,
no fim dos anos 11000, diferentes da maioria
do que foi feito até aquela época
e incluem carbono, formas de vida etc. Esses
modelos mostram uma aceleração
vertiginosa dos efeitos do aquecimento global
e a morte da Amazônia, por volta de
2050. Mas não se conhecem os processos
físicos completos. Esses são
modelos que são ajustados. Eles fazem
uma série de inicializações
com o modelo com diferentes condições
de contorno. O modelo produz uma variedade
de respostas e eles vêem qual é
a tendência do maior número das
respostas. Eles fazem várias rodadas
de simulações com o modelo e
dizem: “80% das simulações indicam
que a Amazônia vai aquecer e secar;
quando ela secar, morre a floresta; daí
entra o fogo e libera carbono (CO2), que vai
acelerar o aquecimento e, a partir daí,
acelera o efeito e aí segue...”
Você está
falando de uma seca na Amazônia por
conta do efeito do aquecimento planetário?
Sim. Porque haveria um aquecimento
do Oceano Atlântico, do Oceano Pacífico
e uma intensidade de seqüências
de El Niños. Estes, quando ocorrem
fortes, como já temos registros, provocam
seca em parte significativa da Amazônia
e ocorrem deformações na circulação
sobre a América do Sul: ao invés
do ar subir na Amazônia, produzindo
chuvas, ele desce, produzindo seca.
É o mecanismo
que explica essa última seca de 2005
na região?
Essa seca foi diferente.
A seca que se conhece e produziu o incêndio
em Roraima, em 1998, foi produzida pelo El
Niño, com origem no Oceano Pacífico.
Em 2005, foi uma poça de água
quente no Atlântico Tropical Norte.
É possível
afirmar que o desmatamento na Amazônia
pode ter efeitos sobre o clima na própria
região e em outras partes do mundo?
Seria muito bom se a comunidade
meteorológica apresentasse uma história
completa desses efeitos. Porque existem trabalhos
muito interessantes, como aquele que afirma
que a Amazônia será “savanizada”
depois que 40% de sua área forem desmatados.
Os efeitos do desmatamento para a diminuição
da evapotranspiração da floresta
são bem conhecidos. Só que se
você pega os 17% de corte raso na região,
segundo os dados do Inpe, mais os 22% de destruição
da cobertura superior por extração
seletiva de madeira – no qual até 30%
dessa cobertura são danificados, mesmo
que você tire uma quantidade menor de
árvores – você está impactando
a capacidade da floresta, como condicionador.
Existem alguns estudos que
mostram o desmatamento na Amazônia afetando
o Meio-Oeste dos Estados Unidos, outros que
apontam um efeito na Noruega, agora há
estudos recentes que mostram que os furacões
no Caribe estão associados ao desmatamento
na Amazônia e a intensificação
de El Niños também, e vice-versa.
E tem um trabalho novo feito
por um grupo de teóricos russos, que
estão sugerindo uma coisa revolucionária,
de que não vai ocorrer apenas a “savanização”,
mas que quando você acaba com um sistema
de convecção tão poderoso
como a Amazônia, ou como as florestas
do Congo, na África, ou a Sibéria,
na Rússia, você inverte o sentido
da circulação atmosférica:
o ar que sopra hoje do oceano para o continente
vai soprar do continente para o oceano. Quando
isso ocorre, o que existe é o Saara,
o deserto. Se o que esta nova teoria está
sugerindo for comprovado – e eles têm
uma fundamentação teórica
muito impressionante e elegante, bem fundamentada
com matemática e com física
– estaremos falando não em “savanização”,
mas em desertificação. Desertificação
não da Amazônia, mas da América
do Sul a leste dos Andes.
No meu entender, em função
do que já sabemos, é ponto pacífico
e todo mundo concorda, já há
motivos para não falarmos mais em reduzir
o desmatamento. Esta é a minha postura.
Na verdade, já precisaríamos
estar recompondo florestas destruídas.
O desmatamento tinha de ser zero pelo menos
há uma década atrás.
Não falar: “ah, são apenas 18
mil quilômetros quadrados [desmatados]”.
Estes são números obscenos se
você pensar que está sendo destruído
o motor hidrológico da América
do Sul.
Você acha
que já há indícios bastante
fortes de mudanças climáticas
por conta do desmatamento?
Eu não sei se eu
tenho o direito de achar. O que eu te digo
com muita franqueza é que não
é possível enterrar a cabeça
na areia como um avestruz. O clima está
em mudança de maneira acelerada. Quanto
disso é resultado do aquecimento global?
Talvez uma parcela. Quem sabe dizer isso?
Poucas pessoas. Talvez ninguém. O aquecimento
global é um processo de transgressão
relativamente lenta. Os fenômenos que
estão acontecendo na América
do Sul, associados aos oceanos ao seu redor,
são de progressão rapidíssima,
coisas que estão acontecendo já
e estavam previstas para acontecer a partir
de 2020, 2030. Qual a minha dedução
por diferença? Desmatamento. Você
está removendo o motor hidrológico
que faz com que a circulação
atmosférica e o transporte de umidade
aconteçam. Isso tem um efeito e deve
se compor com a força mais “branda”
do aquecimento global, com um quadro de alteração
rapidíssima. Se isso já não
fosse suficiente... Não existe justificativa
efetiva legal, ética, moral, lógica
para continuar o desmatamento. Já devíamos
ter concluído essa etapa.
Em uma palestra
no ISA, no final de 2005, você citou
um trabalho que fazia uma associação
entre o desmatamento na Amazônia e o
aquecimento do Atlântico...
Esse trabalho que eu citei
ainda não foi publicado, mas está
sendo finalizado. Eles precisam certificar,
rodar vários cenários em supercomputadores,
verificar as variantes dos componentes dos
testes. O meu avanço se deu porque
eu vi um cruzamento de informações,
que coincidem. Primeiro, oceanógrafos
especialistas em Atlântico, reunidos
em Veneza, em 2005, não tinham explicação
para o aquecimento do Atlântico, para
a ocorrência dessa poça de água
quente. O aquecimento global produz efeitos
em uma escala de tempo que não é
compatível com o aparecimento de uma
poça de água quente no Atlântico,
em 2005. Às vezes, quando uma quantidade
de água entra em uma corrente submarina
demora mais de mil anos para o sinal aparecer
em outro oceano. O oceano tem respostas lentas.
O aquecimento global é um efeito relativamente
novo. Então, para o oceano responder
dessa forma, tem a ver possivelmente com um
efeito local, uma conexão direta...
Com o desmatamento
de 40% da Amazônia, o processo de “savanização”
ocorreria em quanto tempo? Ao longo de séculos,
de décadas?
Isso poderia acontecer ao
longo de décadas ou menos. A coisa
está indo numa velocidade estrondosa.
Olha o que está acontecendo. Essa seca
no ano passado, mas ela tem uma gênese
diferente...
Mas você falou
que ainda não é possível
estabelecer uma relação direta
entre aquela seca, alteração
na floresta e o desmatamento. Não é
possível fazer previsões sobre
um episódio específico como
esse...
Quanto a esse episódio,
os meteorologistas mesmo estão dizendo
que tem a ver com o aquecimento do Oceano
Atlântico. Agora, eles não fazem
essa relação, a não ser
esse grupo que eu citei e que está
finalizando o seu trabalho, que diz que o
aquecimento do Atlântico está
relacionado com o desmatamento. Essa seca
já foi amplamente reconhecida como
resultado do aquecimento do Atlântico.
Isso não é nem uma controvérsia.
A relação entre o desmatamento
e o aquecimento do Atlântico ainda não
veio a público, mas eu já estou
ventilando isso, daí porque acho que
é uma situação muito
séria.
Qual a consistência
sobre a hipótese da relação
entre desmatamento e o aquecimento do oceano?
Hoje, temos 15 anos de avanço
[no debate internacional] que não teriam
sido possíveis se fôssemos esperar
certezas científicas sobre o aquecimento
global. O discurso que então existia
naquela época era exatamente igual
ao que existe hoje sobre a problemática
da Amazônia. Atualmente, existem algumas
incertezas. Tem gente dentro da comunidade
mostrando que o desmatamento está,
inclusive, associado ao aquecimento do Atlântico,
que está associado a furacões
e à seca na Amazônia, saindo
o tiro pela culatra. Tem gente dizendo que
o desmatamento vai diminuir o transporte de
umidade da Amazônia para o Sudeste,
para a Bacia do Prata, como eu tenho falado.
Outros dizendo que vai aumentar a intensidade
das tormentas. Existe um monte de pré-conhecimentos
em ebulição na comunidade científica
e uma parcela significativa dessa comunidade
que tem receio de ir a público e fazer
afirmações cabais porque não
tem certeza ainda. Exatamente como há
15 anos, nas discussões sobre o aquecimento
global. Mas existem pessoas, como é
o meu caso, que resolveram ir a público
e dizer que há todo um espectro de
riscos. Eu acredito em vários desses
riscos pelo que nós já temos
de conhecimento. E precisamos fazer alguma
coisa. Não podemos esperar desmatarem
toda a Amazônia e aí podermos
dizer: “ah, realmente, agora temos certeza
dos efeitos do desmatamento”. Porque o custo
é impagável para a sociedade.
Dizem que o Brasil é
o “berço esplêndido”, mas estamos
“deitados eternamente”. Não chegamos
a avaliar. Vamos pegar o mapa-múndi
e ver os outros países ao redor do
planeta. Que país, que continente tem
a extensão com área verde, com
chuva, com a suavidade [climática]
que tem a América do Sul? Não
tenho dúvida de que o quê promove
o equilíbrio aqui são as florestas.
Está sumindo o responsável pelo
equilíbrio e, em um período
de transição – sem dizer que
um dia vá chegar a ser deserto, é
uma questão ainda controversa – mas
mesmo que passe para uma Savana, ocorrerão
muito mais eventos extremos. Qualquer meteorologista
dirá isso. Não é o Antônio
Nobre que está te falando. Haverá
mais tormentas, mais tornados, mais furacões.
Estaremos saindo basicamente de uma situação
em que a biosfera mantém um ambiente
extremamente confortável para uma situação
de desastres contínuos. A natureza
não poderá ser responsabilizada!
Porque fomos nós que destruímos
o sistema de manutenção do ciclo
atmosférico.
ISA, Oswaldo Braga de Souza.