28/11/2006
- A insistência de alguns setores do
governo, do empresariado e da mídia
em atribuir à legislação
ambiental, em especial ao licenciamento, os
limitantes para o desenvolvimento do País
encobre o verdadeiro problema. Não
há um projeto de desenvolvimento que
incorpore os atributos necessários
a merecer o adjetivo sustentável. A
última matéria do Especial Desmatamento
que o ISA vem publicando ao longo do mês
de novembro analisa a relação
entre infra-estrutura e desmatamento.
O que o governo federal
tem apresentado como objeto do desenvolvimento
são as obras de infra-estrutura. Não
como meio, mas como fim em si mesmo. As obras
geram empregos, aquecem a economia, mas não
garantem desenvolvimento. Obras de infra-estrutura
são elementos, mas não podem
ser o objetivo final. E para que possam servir
de vetores de desenvolvimento sustentável
do país, tais obras devem incorporar,
principalmente, mecanismos, processos e procedimentos
que assegurem o mínimo impacto socioambiental
de sua implementação e operação.
Projetos de infra-estrutura
como hidrelétricas, estradas, pontes
e hidrovias tem efeitos diretos e indiretos
sobre os ecossistemas. É exatamente
para avaliar estes efeitos e buscar minimizá-los
ou, eventualmente, compensá-los que
a legislação ambiental institui
a obrigatoriedade de estudos de impacto ambiental
(EIA) para empreendimentos potencialmente
danosos ao meio ambiente. Estes estudos, estabelecidos
pela Lei da Política Nacional de Meio
Ambiente (Lei nº 6.938 de 31/08/81) e
regulamentados pelas Resoluções
001/86 e 237/98 do Conselho Nacional de Meio
Ambiente (Conama), são obrigatórios
e fazem parte do processo de licenciamento
ambiental dos empreendimentos. O licenciamento
ambiental é um procedimento eficiente
quando a implementação da obra
é de interesse de todos, e quando há
um projeto bem construído. Nesses casos,
o EIA, executado por equipe multidisciplinar,
analisa as conseqüências ambientais
da implantação do projeto, incluindo
o diagnóstico ambiental da área,
a descrição da ação
proposta e suas alternativas, e a identificação,
análise e previsão dos impactos
significativos.
Quando o processo de licenciamento
é feito em cima de um projeto mal estruturado
e cuja relevância não é
reconhecida pela comunidade local diretamente
afetada, acaba se tornando o espaço
onde os conflitos se evidenciam. Isto está
diretamente relacionado ao fato de que é
apenas no licenciamento ambiental que as comunidades
afetadas têm espaço para participar
do processo de discussão da obra. Isso
tem sido historicamente acirrado, em parte,
pela irresponsabilidade dos empreendedores,
que apresentam projetos forjados em quatro
paredes, nas capitais do país, projetos
frágeis, e vêem o licenciamento
apenas como obrigatoriedade, utilizando-se
de artifícios para camuflar os prováveis
impactos das iniciativas.
Diagnóstico recente
elaborado pelo Ibama e divulgado pelo MMA
comprova que a assertiva “leis ambientais
travam o desenvolvimento nacional” está
completamente equivocada. No que se refere
aos empreendimentos de infra-estrutura energética,
o Ministério de Meio Ambiente afirma:
“Entre março de 2003 e novembro de
2006, o Ibama concedeu licença para
21 hidrelétricas, o que representa
um total de 4.882,2 MW. Dessas, 17 receberam
licença para início das obras(LI),
sendo que oito já estão em operação
(LO), e quatro receberam a licença
prévia. Com a licença prévia
(LP), os empreendimentos estão aptos
a participar dos leilões de energia.”
O que ocorre é que vários desses
empreendimentos não estão sendo
implementados porque medidas que cabem aos
empreendedores não foram adotadas até
então tais como a solicitação
de licença de instalação
(após emissão de licença
prévia) ou a entrega de documentos
e análises complementares.
Em relação
às obras rodoviárias, merece
destaque a BR-163, Cuiabá-Santarém,
objeto de ampla negociação para
formulação do Plano BR-163 Sustentável,
proposta de novo paradigma no tratamento de
obras de infra-estrutura para Amazônia.
A BR-163 já tem a licença que
garante a viabilidade da obra para 840 km.
Entretanto, como afirma o MMA: “O empreendedor
requereu, até o momento, a autorização
para o início das obras para apenas
87 km. Foram licenciadas a recuperação
do trecho de 50 km, conhecido como Cintura
Fina, na Serra do Cachimbo, e a instalação
de cinco pontes, mas as obras ainda não
iniciaram. Também foi autorizado o
início das obras para 20 km no trecho
Santarém-Rurópolis. As obras
começaram em outubro.”
A BR-163 não foi
pavimentada ainda por falta de recursos orçamentários.
A expectativa era realizar a obra por meio
de uma Parceria Público-Privada (PPP),
mas, na ausência de investidores privados
interessados, o governo anunciou na semana
passada, que vai bancar o empreendimento.
Outra obra de infra-estrutura
licenciada pelo Ibama e que sofre do mesmo
problema são mil quilômetros
da BR-230, a Transamazônica. A empresa
responsável requereu a licença
para iniciar as obras num trecho de apenas
90 km, entre os municípios de Medicilância
e Altamira, no Pará. Além disso,
o MMA informa que o governo do Estado de Mato
Grosso foi autuado pelo Ibama por realizar
obras sem licença na BR-158, entre
os quilômetros 270 e 412,9. O Termo
de Referência para os estudos ambientais
foi emitido em setembro de 2005, mas ainda
não foram apresentados.
Abertura de estradas e desmatamento
Historicamente, a implantação
de grandes obras de infra-estrutura – a abertura
de rodovias, em particular – tem sido a grande
indutora do desmatamento na Amazônia.
A pavimentação das rodovias
Belém-Brasília e Cuiabá-Porto
Velho, por exemplo, conformou o que hoje se
chama de “arco do desmatamento”. Historicamente,
75% dos desmatamentos na Amazônia ocorreram
dentro de uma faixa de 100 km de largura ao
longo das rodovias pavimentadas . Isso se
deve ao fato de que os impactos não
se restringem à área do traçado
da estrada.
Segundo o Instituto de Pesquisa
Ambiental da Amazônia (Ipam), a pavimentação
das estradas amplia os riscos de incêndios
que gera o empobrecimento da floresta. Uma
vez queimadas, até 40% das árvores
adultas de uma floresta podem morrer, e a
cada vez que a floresta pega fogo, fica mais
vulnerável a novas queimadas. Em algumas
regiões, com a ocupação
ao longo das estradas e atividades de pecuária
extensiva e agricultura de corte e queima,
os incêndios florestais acidentais se
proliferam. O fogo invade a floresta e o cerrado,
causando danos e tornando-os mais suscetíveis
a novos incêndios. Como o clima da região
é diretamente afetado pelas queimadas,
e a tendência é de agravamento
do quadro, a alteração os sistemas
climáticos também é um
possível impacto da pavimentação
de rodovias.
O estudo do Ipam calculou
ainda que o desmatamento adicional associado
a todas as rodovias planejadas em 2.000 seria
de 120 mil a 270 mil km2 ao longo de 20 ou
30 anos (400 mil a 1,35 milhão de ha/ano),
levando à emissão de 6 a 11
bilhões de toneladas de carbono (200
a 550 milhões de t/ano) na atmosfera.
Outro estudo, realizado em 2001 por equipe
do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
(Inpa), coordenado por Willian Laurance, contabilizou
outros projetos de infra-estrutura existentes
e planejados como estradas de terra e outros
tipos (hidrelétricas, linhas de transmissão,
gasodutos, ferrovias etc.), que também
exigem estradas e induzem desmatamentos. Os
cenários indicaram que a infra-estrutura
planejada aumentaria entre 269 mil e 506 mil
hectares por ano a área desmatada na
Amazônia brasileira.
Antes da pavimentação,
grilagem se acirra
Os efeitos podem ser identificados
antes mesmo da concretização
das obras. O anúncio da priorização
da BR-163 pelo governo Lula provocou uma ampliação
do processo de grilagem na região,
promovendo uma explosão do desmatamento
ao longo da estrada e na chamada Terra do
Meio, antes mesmo da sua prometida pavimentação.
O estrago, sem a obra, já é
do tamanho do que previa o Ipam num cenário
de ausência de governabilidade, dez
anos após a implantação
da obra. E isso, mesmo com todo o esforço
para instituição de um Plano
BR-163 Sustentável por parte do governo
e da sociedade civil.
A capacidade de grandes
obras de infra-estrutura, principalmente rodovias,
de desencadear processos violentos de desmatamento
indiscriminado e grilagem de terras é
um consenso, e outros impactos de conseqüências
ainda não calculadas também
podem ocorrer.
As estradas abrem fluxos migratórios
que atingem regiões mais distantes.
Paulo Maurício de Lima, engenheiro
florestal do Inpa, responsável por
um estudo, ainda em andamento, sobre a reconstrução
da BR-319 comenta que as cidades podem receber
novos contingentes populacionais sem ter serviços
e infra-estrutura adequados. “Já existe
uma grande pressão em Humaitá.
É um processo dinâmico. As pessoas
ocupam uma área, depois vendem para
proprietários maiores e saem à
procura de novas áreas. Enquanto houver
terras disponíveis, haverá este
movimento”.
O temor de pesquisadores
e entidades socioambientalistas de que a restauração
da rodovia BR-319 poderia impulsionar o desmatamento
numa região ainda bem preservada da
Amazônia está baseado na experiência
recente da BR-163.
O caso da BR-319
A BR-319 parte da capital
de Rondônia, uma das áreas de
maior pressão pela expansão
da fronteira agrícola, e corta a Amazônia
ocidental na direção sudoeste-nordeste.
As duas BRs (319 e 163) poderiam significar,
assim, dois rasgos na maior floresta tropical
contínua do mundo, partindo perpendicularmente
do chamado “Arco do Desmatamento”. “Não
há quem possa afirmar ao certo o que
representará a interrupção
de fluxos genéticos, ou qual poderá
ser o impacto sobre o regime de chuvas, mas
é provável que as conseqüências
se façam sentir também em outras
partes da região”, lembra Márcio
Santilli, do ISA, em artigo publicado ainda
em 2004, sobre a manutenção
de índices alarmantes de desmatamento
na Amazônia e a fragmentação
de seu bioma.
Análise apresentada
pelo ISA durante a 4ª reunião
Técnico-científica de análise
dos dados de desmatamento na Amazônia,
promovida pelo Ministério de Meio Ambiente
e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe) demonstra a situação
dos desmatamentos até agosto de 2005
nas margens (50 km de cada lado) de cinco
estradas federais na Amazônia.
A BR-158 é a estrada
mais crítica tanto pelo fato da taxa
média de desmatamento nos últimos
cinco anos ter sido bastante superior à
média nas quatro outras BRs estudadas,
mas também porque a taxa (percentual
médio anual desmatado entre 2000 e
2005 em relação ao remanescente
de 2000) foi 250% maior do que a média
de desmatamento para Amazônia (fora
de Terras indígenas e Unidades de Conservação,
que foi de 1,12% ao ano).
O remanescente florestal
no entorno da BR-158 também foi o mais
comprometido na comparação entre
as cinco BRs analisadas na tabela abaixo.
Apenas 35,6% da vegetação no
entorno da BR-158 está mantida (até
agosto de 2005). Em toda Amazônia, fora
de Unidades de Conservação e
Terras Indígenas o percentual remanescente
é de 64,6%. A BR-158 ainda permanece
no topo do ranking ao considerarmos que das
cinco estradas analisadas foi a única
que apresentou taxa expressiva de aumento
dos desmatamentos entre 2003/04 e 2004/05,
com acréscimo de 16% da taxa de desmatamento.
Das cinco estradas analisadas,
a que sofreu menor impacto até agosto
de 2005 foi a BR-319 (Porto Velho – Manaus).
Nela, a velocidade média anual do desmatamento
nos últimos cinco anos foi de 0,29%
e o remanescente em agosto de 2005 era de
90,2%, com um pequeno viés de aumento
dos desmatamentos em 0,4% (comparando 2003/04
com 2004/05). É preciso atualizar este
cálculo para 2006 já que tanto
o anúncio de seu asfaltamento em época
eleitoral, quanto a limitação
provisória implementada pelo governo
federal na região podem ter exercido
influência nessa taxa de desmatamento.
Nas demais BRs (317, 163 e 364) houve redução
na taxa de desmatamento entre 2003/04 e 2004/05.
Dinâmica do desmatamento
(2000/05) no entorno (50km marginais) estrada
% médio dinâmica 2003-05 % remanesc
1o BR 158 2,82% Aumento (+) 16% 35,60%
2o BR 317 1,79% Redução (-)5,8%
41,90%
3o BR 163 1,71% - 50% 59,40%
4o BR 364 1,31% - 6,3% 56%
5o BR 319 0,29% + 0,4% 90.2%
O desmatamento não é o único
efeito adverso da abertura e pavimentação
de estradas sobre o meio ambiente. Durante
a última reunião da Convenção
das Partes Sobre Diversidade Biológica
(COP-8), o epidemiologista Ulisses Confalonieri,
professor da Escola Nacional de Saúde
Pública da Fiocruz, afirmou também
serem reconhecidos os efeitos na saúde
humana provocados por grandes obras de infra-estrutura
como abertura de estradas, grandes desmatamentos
e construção de barragens. “As
relações entre desflorestamento
e proliferação de doenças
são muito conhecidas desde o início
do século passado, com a abertura da
ferrovia Noroeste, em São Paulo. A
derrubada facilitou o contato de pessoas com
doenças que estavam abrigadas no interior
das matas”.
Reação do
governo
Mais recentemente, o governo
criou um novo instrumento de planejamento
para a destinação de áreas
no entorno de obra de infra-estrutura: a Área
de Limitação Administrativa
Provisória (ALAP).
Criada por Medida Provisória
em 18 de fevereiro de 2005, a ALAP é
um instrumento legal que autoriza o governo
a paralisar todas as atividades econômicas
que causem novos desmatamentos ou sejam potencialmente
causadoras de significativa degradação
ambiental em uma área determinada.
A publicação da MP fez parte
do chamado “Pacote Verde” apresentado pelo
governo federal para tentar conter a violência,
a grilagem de terras e o desmatamento em toda
a Amazônia, em resposta ao assassinato
da missionária Doroty Stang, no dia
12 de fevereiro, em Anapu (PA). link
Embora o Plano de Ação
para Prevenção e Controle do
Desmatamento na Amazônia Legal, lançado
em 15 de março de 2004 pelo governo
federal tenha incorporado as grandes obras
de infra-estrutura em seu primeiro componente,
introduzindo procedimentos preventivos e sinalizando
a revisão do portfólio do atual
Plano Plurianual (PPA), pouco se avançou
na sua implementação. A parte
de análise do Plano tratou o tema como
crucial para o conjunto das demais ações,
mas o componente não apenas deixou
de ser implementado, como foi formalmente
removido, de acordo com o relatório
divulgado pela Casa Civil, em maio de 2005.
Recentemente, organizações não-governamentais
reforçaram a cobrança para que
o governo apresente uma avaliação
do Plano que incorpore informações
sobre os componentes não desenvolvidos.
Com o discurso do Presidente
Lula na última semana dizendo que precisava
destravar a questão dos índios,
dos quilombolas, ambientalistas, Ministério
Público e Tribunal de Contas de União,
tudo indica que o governo federal, a despeito
do reconhecido esforço feito pelo Ministério
de Meio Ambiente, resolveu escancarar depois
da reeleição sua falta de juízo
socioambiental.
A evolução
em quatro fases do tratamento desse tema pelo
governo federal nos dá um placar dos
desafios que estão pela frente. Na
Fase 1 (2003), o governo reconhece que obras
de infra-estrutura na Amazônia têm
impacto direto nos desmatamentos e elabora
um capítulo especial no Plano para
Prevenção e Controle do Desmatamento
na Amazônia inteiramente dedicado às
medidas preventivas e mitigadoras das obras
prioritárias. Na Fase 2 (2004), o governo
ignora o que propôs no Plano em relação
ao binômio desmatamento-infra-estrutura,
reedita o Plano sem dar destaque à
supressão de um capítulo inteiro
e afirma que tal tema será tratado
no incerto Plano Amazônia Sustentável;
em contrapartida investe na concepção
de uma proposta paradigmática de obra
de infra-estrutura para parte da região
amazônica, o Plano BR-163 Sustentável.
Na Fase 3 (2005/06), o anúncio de asfaltamento
da BR-163 feito em 2003 já tem seus
efeitos nas elevadas taxas de desmatamento
na região; o Ministro dos Transportes,
em campanha para o Senado no Amazonas anuncia
o asfaltamento da BR-319, sem qualquer discussão
prévia, planejamento ou avaliação
de impacto; o governo reage com a aprovação
da MP nº 239/05 instituindo a figura
da Limitação Administrativa
Provisória para fins de criação
de UCs e cria um volume expressivo de Ucs
na região. Na Fase 4 (2006 “pós-reeleição”),
Lula se compromete com o crescimento acima
de 5% do PIB sem ter nenhum plano consistente
ao seu alcance; adota o discurso da década
de 1970 do desenvolvimento a qualquer custo
ao acusar movimentos ambientalistas, quilombolas,
índios, o Ministério Público
e o Tribunal de Contas da União de
serem os responsáveis pelo baixo crescimento
do PIB alcançado nos últimos
anos no Brasil.
A perspectiva de novos investimentos
em obras de infra-estrutura para atender a
expectativa de desenvolvimento anunciada pelo
Presidente demandará uma 5ª fase
desse longa metragem com a revisão
do discurso vexatório de Lula, a avaliação
responsável das prioridades de desenvolvimento
para Amazônia, a análise consistente
e integrada de impactos socioambientais dos
principais projetos de infra-estrutura para
a região, um processo de diálogo
franco e aberto com comunidades potencialmente
afetadas, e a implementação
de medidas mitigadoras e compensatórias
como manda a lei e a Constituição
brasileira. Em síntese: “Desenvolvimento
sim, de qualquer jeito não!” Leia mais.
ISA, André Lima e
Adriana Ramos.