3 de Julho de 2007 - Mylena
Fiori - Enviada especial - Wilson Dias/ABr
- Coimbra (Portugal) - O professor do Centro
de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra,
Boaventura de Sousa
Santos, concede entrevista.
Lisboa (Portugal) - O sociólogo
português Boaventura de Sousa Santos,
da Universidade de Coimbra, vê com reservas
a idéia de Brasil e União Européia
se unirem para promover a produção
de biocombustível na África,
contida na proposta de parceria estratégica
que será apresentada amanhã
(4) ao governo brasileiro, em Lisboa. Segundo
ele, pode causar prejuízos à
população local.
Nesta segunda parte da entrevista
concedida à Agência Brasil por
ocasião da Cúpula Brasil-UE,
Boaventura fez referência ao massacre
de sem-terra em Eldorado dos Carajás
(PA) para alertar para o perigo da luta pelo
controle dos biocombustíveis no mundo.
Para ele, a idéia está sendo
vendida como o novo Eldorado, “e todos os
Eldorados levam aos Carajás deste mundo”.
O professor também
alertou que a Europa quer usar o Brasil da
mesma forma que os Estados Unidos: como um
bom aluno. Leia os principais trechos.
Agência Brasil: Qual sua avaliação
sobre a proposta de parceria estratégica
que será formalmente apresentada ao
Brasil durante a Cúpula Brasil-União
Européia?
Boaventura de Sousa Santos: O documento que
acaba de ser preparado pela Comissão
Européia para o Parlamento [europeu]
é 90% de caráter econômico.
O resto a gente já sabe, conhece a
lógica destes documentos. Falam da
justiça, da civil society, uma série
de coisas, mas é tudo para enfeitar
um documento que fundamentalmente procura
vantagens econômicas mútuas.
ABr: Então o Brasil
também tem apenas interesse econômico
nesta parceria?
Boaventura: O Brasil tem muitos problemas
que certamente não serão discutidos
na cimeira [cúpula]. O Brasil é
um país onde há muita contestação
social neste momento em relação
a muitos aspectos do modelo de desenvolvimento.
Sabemos muito bem dos problemas ambientais
e outros de exclusão social produzidos
por este modelo de desenvolvimento e que provavelmente
serão agravados com os biocombustíveis.
Tudo isto pode conduzir a uma maior destruição
da Amazônia, por exemplo, e exclusão
dos povos indígenas, das populações
ribeirinhas e negros de quilombos. Isto é
algo que devia ser discutido do ponto de vista
da cidadania, mas penso que estas coisas não
interessam ao governo brasileiro. Essas áreas,
portanto, certamente não estarão
na agenda. Como não estarão
na agenda aquilo que o Brasil pode ensinar
à Europa no domínio, por exemplo,
da democracia participativa. Na Europa, temos
hoje cerca de 50 iniciativas de orçamento
participativo municipal, muitas das quais
tiveram no Brasil, nomeadamente em Porto Alegre,
sua inspiração.
ABr: O senhor falou que
a proposta européia de parceria estratégica
busca vantagens recíprocas. O que o
Brasil pode ganhar?
Boaventura: Ao Brasil interessa uma relação
estratégica com a Europa para aliviar
um pouco a pressão dos Estados Unidos,
que tentam fazer uma aproximação
descarada com o Brasil com o objetivo descarado
de isolar o Brasil do resto da América
Latina. Penso que a Europa tenta fazer o mesmo
mais sutilmente. E, portanto, cria-se um campo
de manobra para o Brasil. Ao aproximar-se
da Europa, o Brasil não tem que se
distanciar da Bolívia, da Venezuela
nem da Argentina. Tem é que mostrar
sua identidade, sendo representante dos interesses
latino-americanos aqui, com coisas muito concretas.
A posição que a Petrobras teve
na Bolívia é diferente da Repsol
espanhola ou da Total francesa. Portanto,
pode ser que a posição do Brasil
seja consolidada continentalmente na medida
em que o Brasil consegue impor os seus pontos
de vista. Penso que há aqui, do ponto
de vista do Brasil, um grande ganho que é
uma legitimidade internacional com uma grande
potência econômica global, que
é a Europa.
ABr: E do ponto de vista
econômico, o que o Brasil pode ganhar?
Boaventura: O Brasil tem hoje uma base tecnológica
muito forte, essa base precisa ser globalizada
e a Europa pode ser um parceiro estratégico
nisso. Por outro lado, o Brasil está
muito interessado em que se desbloqueie a
Organização Mundial do Comércio
em termos que sejam aceitáveis para
os outros países menos desenvolvidos,
e tem uma certa esperança de que a
Europa tenha uma atitude diferente dos Estados
Unidos. Penso que no futuro a Europa vai ter
mais possibilidade de mostrar autonomia no
plano econômico do que no plano político,
pois no econômico há pressões
das multinacionais européias que são
iguaizinhas às americanas e brasileiras,
sul-africanas e indianas. No fundo, todas
têm o mesmo comportamento. O problema
é saber qual é o controle que
os Estados podem ter sobre elas. Penso que
uma parceria com o Brasil pode ser útil
para o Brasil se conseguir obter algumas concessões
da Europa. Assim como podemos pensar que a
Europa pode ter um certo interesse em isolar
o Brasil dos outros países latino-americanos,
o Brasil tem um interesse em separar a Europa
dos Estados Unidos.
ABr: A chamada atuação
triangular, nos moldes da firmada entre Brasil
e Estados Unidos, para a produção
de biocombustíveis na África
também é algo que interessa
ao Brasil nessa parceria, inclusive dentro
de uma estratégia de ajudar a reduzir
a pobreza naquele continente...
Boaventura: Tudo o que seja
monocultura gera pobreza. As pessoas não
comem biocombustível. A África
está farta de grandes incentivos para
produção para exportação.
O Banco Mundial há décadas diz
aos africanos que têm que produzir para
exportar. O resultado está à
vista. A África era auto-suficiente
em produtos agrícolas depois da Segunda
Guerra Mundial e hoje importa produtos agrícolas,
é uma sociedade mais rural precisamente
por causa desta política. Quando vemos
que os Estados Unidos abraçam qualquer
idéia, ela tem algo que não
deve ser muito bom. É uma grande oportunidade
de negócios acima de tudo, para o meio
ambiente trará muito pouco. Depois
dos desastres todos que se envolveram na busca
do controle do petróleo mundial, os
Estados Unidos querem ver se controlam os
biocombustíveis com um bom aluno que
é o Brasil. E por ter idéia
de que o Brasil será um bom aluno dos
Estados Unidos, a Europa tem a mesma idéia.
ABr: Então o Brasil
está caindo numa armadilha?
Boaventura: Não penso que é
uma armadilha. Penso que o Brasil tem que
ter um pouco a idéia de qual vai ser
o benefício dos biocombustíveis
no seu próprio país e tem que
haver muita discussão ambiental sobre
isso. Penso que os movimentos sociais vão
acordar para a necessidade de ter uma posição
sobre esta questão. Ela está
sendo vendida como o novo Eldorado e todos
os Eldorados levam aos Carajás deste
mundo. É preciso ter cuidado de o Brasil
não afirmar-se como potência
sub-imperial para contribuir, no fundo, para
o subdesenvolvimento da África.
3 de Julho de 2007 -
Mylena Fiori - Enviada especial - Wilson Dias/ABr
- Coimbra (Portugal) - O professor do Centro
de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra,
Boaventura de Sousa Santos, concede entrevista.
Lisboa (Portugal) - O sociólogo
português Boaventura de Sousa Santos,
da Universidade de Coimbra, vê com reservas
a idéia de Brasil e União Européia
se unirem para promover a produção
de biocombustível na África,
contida na proposta de parceria estratégica
que será apresentada amanhã
(4) ao governo brasileiro, em Lisboa. Segundo
ele, pode causar prejuízos à
população local.
Nesta segunda parte da entrevista
concedida à Agência Brasil por
ocasião da Cúpula Brasil-UE,
Boaventura fez referência ao massacre
de sem-terra em Eldorado dos Carajás
(PA) para alertar para o perigo da luta pelo
controle dos biocombustíveis no mundo.
Para ele, a idéia está sendo
vendida como o novo Eldorado, “e todos os
Eldorados levam aos Carajás deste mundo”.
O professor também
alertou que a Europa quer usar o Brasil da
mesma forma que os Estados Unidos: como um
bom aluno. Leia os principais trechos.
Agência Brasil: Qual sua avaliação
sobre a proposta de parceria estratégica
que será formalmente apresentada ao
Brasil durante a Cúpula Brasil-União
Européia?
Boaventura de Sousa Santos: O documento que
acaba de ser preparado pela Comissão
Européia para o Parlamento [europeu]
é 90% de caráter econômico.
O resto a gente já sabe, conhece a
lógica destes documentos. Falam da
justiça, da civil society, uma série
de coisas, mas é tudo para enfeitar
um documento que fundamentalmente procura
vantagens econômicas mútuas.
ABr: Então o Brasil
também tem apenas interesse econômico
nesta parceria?
Boaventura: O Brasil tem muitos problemas
que certamente não serão discutidos
na cimeira [cúpula]. O Brasil é
um país onde há muita contestação
social neste momento em relação
a muitos aspectos do modelo de desenvolvimento.
Sabemos muito bem dos problemas ambientais
e outros de exclusão social produzidos
por este modelo de desenvolvimento e que provavelmente
serão agravados com os biocombustíveis.
Tudo isto pode conduzir a uma maior destruição
da Amazônia, por exemplo, e exclusão
dos povos indígenas, das populações
ribeirinhas e negros de quilombos. Isto é
algo que devia ser discutido do ponto de vista
da cidadania, mas penso que estas coisas não
interessam ao governo brasileiro. Essas áreas,
portanto, certamente não estarão
na agenda. Como não estarão
na agenda aquilo que o Brasil pode ensinar
à Europa no domínio, por exemplo,
da democracia participativa. Na Europa, temos
hoje cerca de 50 iniciativas de orçamento
participativo municipal, muitas das quais
tiveram no Brasil, nomeadamente em Porto Alegre,
sua inspiração.
ABr: O senhor falou que
a proposta européia de parceria estratégica
busca vantagens recíprocas. O que o
Brasil pode ganhar?
Boaventura: Ao Brasil interessa uma relação
estratégica com a Europa para aliviar
um pouco a pressão dos Estados Unidos,
que tentam fazer uma aproximação
descarada com o Brasil com o objetivo descarado
de isolar o Brasil do resto da América
Latina. Penso que a Europa tenta fazer o mesmo
mais sutilmente. E, portanto, cria-se um campo
de manobra para o Brasil. Ao aproximar-se
da Europa, o Brasil não tem que se
distanciar da Bolívia, da Venezuela
nem da Argentina. Tem é que mostrar
sua identidade, sendo representante dos interesses
latino-americanos aqui, com coisas muito concretas.
A posição que a Petrobras teve
na Bolívia é diferente da Repsol
espanhola ou da Total francesa. Portanto,
pode ser que a posição do Brasil
seja consolidada continentalmente na medida
em que o Brasil consegue impor os seus pontos
de vista. Penso que há aqui, do ponto
de vista do Brasil, um grande ganho que é
uma legitimidade internacional com uma grande
potência econômica global, que
é a Europa.
ABr: E do ponto de vista
econômico, o que o Brasil pode ganhar?
Boaventura: O Brasil tem hoje uma base tecnológica
muito forte, essa base precisa ser globalizada
e a Europa pode ser um parceiro estratégico
nisso. Por outro lado, o Brasil está
muito interessado em que se desbloqueie a
Organização Mundial do Comércio
em termos que sejam aceitáveis para
os outros países menos desenvolvidos,
e tem uma certa esperança de que a
Europa tenha uma atitude diferente dos Estados
Unidos. Penso que no futuro a Europa vai ter
mais possibilidade de mostrar autonomia no
plano econômico do que no plano político,
pois no econômico há pressões
das multinacionais européias que são
iguaizinhas às americanas e brasileiras,
sul-africanas e indianas. No fundo, todas
têm o mesmo comportamento. O problema
é saber qual é o controle que
os Estados podem ter sobre elas. Penso que
uma parceria com o Brasil pode ser útil
para o Brasil se conseguir obter algumas concessões
da Europa. Assim como podemos pensar que a
Europa pode ter um certo interesse em isolar
o Brasil dos outros países latino-americanos,
o Brasil tem um interesse em separar a Europa
dos Estados Unidos.
ABr: A chamada atuação
triangular, nos moldes da firmada entre Brasil
e Estados Unidos, para a produção
de biocombustíveis na África
também é algo que interessa
ao Brasil nessa parceria, inclusive dentro
de uma estratégia de ajudar a reduzir
a pobreza naquele continente...
Boaventura: Tudo o que seja
monocultura gera pobreza. As pessoas não
comem biocombustível. A África
está farta de grandes incentivos para
produção para exportação.
O Banco Mundial há décadas diz
aos africanos que têm que produzir para
exportar. O resultado está à
vista. A África era auto-suficiente
em produtos agrícolas depois da Segunda
Guerra Mundial e hoje importa produtos agrícolas,
é uma sociedade mais rural precisamente
por causa desta política. Quando vemos
que os Estados Unidos abraçam qualquer
idéia, ela tem algo que não
deve ser muito bom. É uma grande oportunidade
de negócios acima de tudo, para o meio
ambiente trará muito pouco. Depois
dos desastres todos que se envolveram na busca
do controle do petróleo mundial, os
Estados Unidos querem ver se controlam os
biocombustíveis com um bom aluno que
é o Brasil. E por ter idéia
de que o Brasil será um bom aluno dos
Estados Unidos, a Europa tem a mesma idéia.
ABr: Então o Brasil
está caindo numa armadilha?
Boaventura: Não penso que é
uma armadilha. Penso que o Brasil tem que
ter um pouco a idéia de qual vai ser
o benefício dos biocombustíveis
no seu próprio país e tem que
haver muita discussão ambiental sobre
isso. Penso que os movimentos sociais vão
acordar para a necessidade de ter uma posição
sobre esta questão. Ela está
sendo vendida como o novo Eldorado e todos
os Eldorados levam aos Carajás deste
mundo. É preciso ter cuidado de o Brasil
não afirmar-se como potência
sub-imperial para contribuir, no fundo, para
o subdesenvolvimento da África.