30/11/2007 - Um dia depois
da participação em seminário
organizado pelo ISA, AS-PTA e Terra de Direitos,
Casa Civil decide submeter Anteprojeto de
Lei de Acesso a Recursos
Genéticos e Conhecimentos Tradicionais
a consulta pública via internet, sem
garantir participação dos povos
indígenas, populações
tradicionais e agricultores familiares que
não têm acesso a meios de comunicação.
O anúncio da realização
de uma consulta por correspondência
(por correio eletrônico e cartas), no
fim do ano e com um prazo curto - até
28 de fevereiro de 2008, reforça a
forma pouco participativa que tem caracterizado
a atuação do governo na elaboração
da política nacional de acesso à
biodiversidade, repartição de
benefícios, proteção
de conhecimentos tradicionais e direitos de
agricultores.
Apesar da inegável
importância estratégica, a discussão
acerca dessa legislação tem
sido marcada pela falta de democracia e transparência.
Regido por uma Medida Provisória desde
2000, reeditada 16 vezes, o tema era discutido
a portas fechadas, sem a participação
da sociedade civil, movimentos sociais, povos
indígenas e comunidades locais diretamente
afetados pela lei (veja quadro sobre o processo
de formulação da lei sob consulta).
O PL que deverá substituir
a Medida Provisória 2.186-16, de agosto
de 2001 e que criou o Conselho de Gestão
do Patrimônio Genético (CGEN),
dispõe sobre: a coleta de material
biológico; o acesso aos recursos genéticos
e seus derivados, para pesquisa científica
ou tecnológica, bioprospecção
ou elaboração ou desenvolvimento
de produtos comerciais; a remessa e o transporte
de material biológico; o acesso e a
proteção aos conhecimentos tradicionais
associados e aos direitos dos agricultores;
além de abordar a repartição
de benefícios resultantes do uso da
biodiversidade.
A maneira escolhida pelo
governo brasileiro para colher opiniões
não obedece ao disposto em vários
tratados internacionais ratificados com força
de lei no Brasil. A Convenção
da Diversidade Biológica (CDB), o Tratado
Internacional sobre Recursos Fitogenéticos
para Alimentação e Agricultura
da FAO (que trata dos direitos de agricultor,
objeto desta legislação) e a
Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho obrigam o governo
federal a consultar previamente os povos indígenas
e tradicionais e os agricultores familiares
na tomada de decisões e formulação
de políticas públicas que afetem
seus modos de vida, recursos e territórios.
Sociedade civil cobra uso
livre de sementes
Realizada no dia 27 de novembro,
a reunião intitulada “Tratado Internacional
sobre Recursos Fitogenéticos para a
Alimentação e Agricultura da
Organização das Nações
Unidas para a Agricultura e Alimentação
(FAO) e a posição do Governo
Brasileiro”, organizada pela Assessoria e
Serviços a Projetos em Agricultura
Alternativa (AS-PTA), Instituto Socioambiental
e Terra de Direitos, contou com a participação
da Fase (Federação de Órgãos
para a Assistência Social e Educacional),
Contag (Confederação Nacional
de Trabalhadores da Agricultura), MMC (Movimento
de Mulheres Camponesas), ANA (Articulação
Nacional de Agroecologia), MPA (Movimentos
de Pequenos Agricultores), membros do governo
federal, representantes da Funai (Fundação
Nacional do Índio), MMA (Ministério
do Meio Ambiente), MinC (Ministério
da Cultura), Fundação Palmares,
Ministério das Relações
Exteriores (MRE), Casa Civil da Presidência
da República, agricultores indígenas
do Xingu e especialistas da academia.
O debate teve por objetivo
cobrar do governo explicações
sobre a forma como vem discutindo o tema e
reclamar a garantia de direitos a povos indígenas,
comunidades locais e agricultores familiares
sobre seus conhecimentos e sementes manejadas
localmente. De acordo com Darci Frigo, da
Terra de Direitos, este APL coloca em choque
a garantia dos direitos de agricultor e a
garantia do mercado: “Fortalece mais ainda
as grandes empresas do agronegócio,
reforçando a assimetria entre os direitos
da agricultura comercial e os direitos de
agricultor. O projeto sobre consulta reconhece
os direitos de propriedade intelectual e,
apenas de forma genérica e artificial
os direitos de agricultor.”
As organizações
da sociedade civil presentes discordaram do
tratamento dado aos direitos de agricultor
no APL. Avaliam que não garante a manutenção
dos sistemas agrícolas e sementes locais
a salvo do sistema de propriedade intelectual
representado por patentes e cultivares, reduzindo
os agricultores a meros provedores de recursos
genéticos e de informações
para os setores de pesquisa agrícola
que servem ao mercado de sementes e de biotecnologia.
E cobraram do representante da Casa Civil,
Marcelo Varella, que seja garantido o direito
dos agricultores locais de manter o livre
uso de suas sementes e impedir que elas sejam
utilizadas para o desenvolvimento de novas
variedades protegidas por ferramentas de propriedade
intelectual como patentes ou cultivares.
Para Gabriel Fernandes,
da AS-PTA, os direitos de agricultor devem
ser encarados como um método para reconhecer
o papel e a contribuição dos
agricultores na conservação,
na geração e no melhoramento
dos recursos genéticos. “Devem, ao
mesmo tempo, ser uma garantia de que eles
continuarão a ter livre acesso e uso
aos recursos da biodiversidade, pois estes
não são apenas detentores de
sementes. Desempenham papel fundamental na
conservação e no desenvolvimento
de novas variedades”.
Consulta pública
por correspondência
Durante o seminário,
Varella, da Casa Civil, apresentou a proposta
da consulta pública por correspondência,
o que causou contestação dos
representantes da sociedade civil presentes
(leia no final do texto, quadro com o despacho
que oficializou a consulta). As organizações
reivindicaram da Casa Civil o mesmo tratamento
dado a setores da sociedade científica,
que foram exaustivamente consultados pelo
órgão ao longo deste ano, ressaltando
a necessidade de um prazo mais longo e da
realização de audiências
públicas presenciais com povos indígenas,
comunidades locais e agricultores familiares
em diferentes regiões do Brasil. Em
maio de 2007, mais de uma centena de organizações
e redes da sociedade civil organizada protocolaram
carta na Casa Civil pleiteando um processo
de consulta. Marcelo Varella disse que a carta
foi discutida, mas não sabe o que aconteceu
com o pedido de audiência.
O conteúdo do projeto
não é de fácil compreensão.
São 142 artigos que versam sobre os
direitos de populações tradicionais
e o uso de seus recursos e conhecimentos;
a coleta e remessa de material genético
brasileiro para o exterior; passando por criação
de novos impostos, pesquisa, desenvolvimento
e mecanismos de proteção intelectual;
sanções penais e administrativas.
O PL irá regular também as relações
entre empresas e povos tradicionais, bem como
a aplicação de recursos em projetos
de conservação da biodiversidade
e valorização dos conhecimentos
tradicionais, temas de grande complexidade,
que demandam tempo para discussão e
formação de opinião.
O projeto de lei de acesso,
objetivo da consulta pública está
disponível aqui. As críticas,
sugestões e contribuições
poderão ser encaminhadas até
o dia 28 de fevereiro de 2008, à Casa
Civil da Presidência da República
ou pelo correio eletrônico: recursosgeneticos@planalto.gov.br.
Por quê a pressa?
Entre outras coisas, o APL
pretende regulamentar parte do Tratado da
FAO sobre recursos fitogenéticos para
agricultura e alimentação Pedro
Aurélio Fiorêncio Cabral de Andrade,
da divisão de Meio Ambiente do Ministério
das Relações Exteriores, relatou
o andamento das negociações
internacionais referentes ao Tratado, destacando
o ritmo lento e a pouca vontade dos países
em fazer avançar as discussões.
Enquanto isso, o governo
brasileiro quer submeter o APL à consulta,
nos últimos dias de 2007, denotando
pressa para encaminhar uma questão
que não se reflete no âmbito
internacional.
Diante da informação
prestada pelo conselheiro Milton Rondó
Filho, do MRE, de que a FAO está com
sérios problemas orçamentários,
José Maria Ferraz, da Embrapa-Meio
Ambiente, questionou o motivo da pressa para
implementar o tratado: “Queremos ser mais
realistas que o próprio órgão,
uma vez que seus trabalhos estão comprometidos
pela falta de verbas.”
Nomeando o lobo para cuidar
do galinheiro
Outra crítica feita
pelo movimento social presente diz respeito
à competência reconhecida ao
Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento (MAPA) para gerir e proteger
os direitos de agricultores. De acordo com
Frigo, da Terra de Direitos, se couber ao
MAPA fazer a gestão dos recursos da
agrobiodiversidade e garantir os direitos
de agricultor, pouco ou nada será feito
nesse sentido, uma vez que o MAPA dificilmente
irá defender direitos a que se opõem
os interesses do agronegócio. “É
uma ilusão achar que o MAPA defenderá
direitos de agricultores familiares ou tradicionais
quando em seu mandato está expressa
a defesa da agricultura comercial de exportação”,
destacou.
Em razão disso, a
lei deve ser encarada como uma oportunidade
para equilibrar a equação mercado
x pequenos agricultores e, nesse sentido,
o Ministério do Desenvolvimento Agrário
(MDA) deve ser o órgão gestor
desses recursos e direitos uma vez que tem
competência para isso. Para Darci Frigo,
é legitimo o agronegócio ter
seu espaço para fazer política.
"Mas os agricultores familiares e tradicionais
devem ter o mesmo espaço, e este APL
deve garantir isso de forma direta: direito
de consentir e negar o acesso; direito a proibir
o uso não autorizado de seus recursos
e conhecimentos; direito a guarda, troca,
melhoramento e venda de suas variedades; direito
ao livre uso do conhecimento sem se submeter
a mecanismos de propriedade intelectual".
A MP 2.186-16, de agosto
de 2001, criou o Conselho de Gestão
do Patrimônio Genético (CGEN)
com representação apenas governamental,
situação em que permanece até
hoje, apesar de o governo ter, informalmente,
admitido a presença de membros “convidados”
da sociedade civil sem direito a voto. A partir
daí, a ausência de participação
e controle social tem se refletido na construção
da política nacional de acesso à
biodiversidade e à repartição
de benefícios.
No inicio de 2003, o CGEN
criou uma câmara temática de
legislação, com o objetivo de
discutir uma nova proposta para substituir
a MP 2.186-16/01. Embora tenha sido um processo,
em tese, aberto, muitas foram as limitações
à participação da sociedade.
Poucas organizações acompanharam
o processo. Não houve divulgação
suficiente nem apoio financeiro para viabilizar
a participação.
Encerrado o debate na câmara
temática, o Anteprojeto de Lei (APL)
foi encaminhado no inicio de 2004 à
Casa Civil da Presidência da República,
onde se iniciou um novo processo de discussão,
restrito aos ministérios interessados.
Alguns pressionaram e garantiram uma divisão
artificial do sistema de acesso, entre recursos
da biodiversidade e recursos da agrobiodiversidade
usados em alimentação e agricultura,
conferindo competências institucionais
para regular setores economicamente relevantes,
sem controle social ou espaço de interlocução.
O governo, por meio da Casa
Civil, realizou várias consultas ao
setor acadêmico – Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC) e
Academia Brasileira de Ciências (ABC)
–, sem escutar os outros grupos da sociedade,
cujos direitos também serão
afetados pela nova legislação.
Ao longo destes 7 anos (a
primeira versão da MP 2.186 é
de 2000), várias foram as reivindicações
de participação da sociedade
civil no processo de formulação
da lei de acesso.
Em maio de 2007, 77 organizações
de povos e comunidades tradicionais, 16 organizações
não-governamentais e 16 redes, fóruns
e articulações nacionais da
sociedade protocolaram um pedido de audiência
na Casa Civil, com cópia a todos os
ministérios envolvidos na discussão
da lei e ao Presidente da República.
O objetivo da audiência era o de estabelecer
um processo ampliado e participativo de discussão
da nova proposta, antes que ela fosse concluída,
para que não se incorresse em erros
capazes de causar impactos negativos a amplos
setores da sociedade. A carta até hoje
sequer foi respondida, e o representante da
Casa Civil presente ao debate no Itamaraty
informou não ter conhecimento sobre
seu destino.
O despacho que instituiu
a consulta
CONSULTA PÚBLICA
PROJETO DE LEI A MINISTRA DE ESTADO CHEFE
DA CASA CIVIL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
torna público, nos termos do art. 34,
inciso II, do Decreto no 4.176, de 28 de março
de 2002, projeto de lei que dispõe
sobre a coleta de material biológico,
o acesso aos recursos genéticos e seus
derivados, para pesquisa científica
ou tecnológica, bioprospecção
ou elaboração ou desenvolvimento
de produtos comerciais, a remessa e o transporte
de material biológico, o acesso e a
proteção aos conhecimentos tradicionais
associados e aos direitos dos agricultores,
e a repartição de benefícios.
O texto em apreço encontra-se disponível,
também, na internet. A relevância
da matéria recomenda a sua ampla divulgação,
a fim de que todos possam contribuir para
o seu aperfeiçoamento. Eventuais sugestões
poderão ser encaminhadas, até
o dia 28 de fevereiro de 2008, à Casa
Civil da Presidência da República,
Palácio do Planalto, 4o andar, sala
3, Brasília-DF, CEP 70.150-900, com
a indicação "Sugestões
ao projeto de lei que dispõe sobre
o acesso aos recursos genéticos e seus
derivados", ou pelo e-mail: recursosgeneticos@planalto.gov.br
Dilma Roussef
ISA, Henry Novion e Fernando Mathias.
+ Mais
Governo quer regularizar
ocupações urbanas a todo custo
27/11/2007 - Votação
de Projeto de Lei que trata de ocupações
irregulares em áreas urbanas, prevista
para esta quarta-feira, 28/11, na Câmara
Federal, pode trazer graves conseqüências
a qualidade do meio ambiente urbano. Isso
porque há o risco do texto final do
PL excluir parágrafo que exige dos
municípios condições
técnicas e controle social necessários
para que a regularização ambiental
e urbanística das ocupações.
Votação de
Projeto de Lei que trata de ocupações
irregulares em áreas urbanas, prevista
para amanhã na Câmara Federal,
pode trazer graves conseqüências
a qualidade do meio ambiente urbano. Isso
porque um acordo entre o Ministério
do Meio Ambiente (MMA) e o Ministério
das Cidades (MC) quer retirar o dispositivo
que assegura que, quando os municípios
não têm condições
técnicas de licenciar o plano de regularização
urbanística de seus territórios,
a função passa para o respectivo
Estado. Se isso de fato ocorrer, e os municípios
ganharem autonomia plena para o licenciamento,
abre-se a brecha - sob a justificativa de
agilizar a regularização de
áreas ocupadas consolidadas - para
a regularização sem anteparo
técnico e controle social, à
mercê de conveniências políticas.
O problema está concentrado
na possível retirada do parágrafo
2 do artigo 83 do Substitutivo do PL 3.057/2000,
que deve ir amanhã para votação
na Comissão Especial do Projeto de
Lei de Parcelamento do Solo Urbano, cuja relatoria
está à cargo do deputado Renato
Amary (PSDB-SP).Qual o problema na supressão
deste parágrafo? Sem ele, todo e qualquer
município poderá licenciar a
regularização ambiental e urbanística
de ocupações irregulares mesmo
que não tenha gestão plena,
ou seja, sem ter órgão ambiental
estruturado e conselho de meio ambiente. Isso
pode significar que a licença será
dada de qualquer forma, sem que se assegure
o respeito a critérios ambientais mínimos
e sem a participação de entidades
da sociedade civil organizada.
Funcionários do Ministério
das Cidades argumentam que remeter ao órgão
estadual é burocratizar a solução
do problema (regularização),
já que a grande maioria dos municípios
não tem e não terá gestão
plena e tudo, ao fim e ao cabo, irá
mesmo para os órgãos ambientais
estaduais. “Embora isso seja verdade, não
é retirando uma garantia que se solucionará
o problema”, afirma Raul Telles do Valle,
coordenador do Programa de Política
e Direito do Instituto Socioambiental. “Não
se pode aceitar que, em prol de uma suposta
agilidade, se permita consolidações
de situações urbanas que não
sigam critérios ambientais mínimos,
necessários inclusive à qualidade
de vida das próprias populações
que ali vivem”.
Qual seria então
o melhor caminho? Manter o artigo e criar,
por regulamento, condições para
que os municípios possam ter gestão
plena via convênio com a União
ou com os Estados, por exemplo. Outra alternativa
poderia ser a criação de consórcios
intermunicipais, que permite que um município
pequeno, por exemplo, se una a outros para
criar um órgão técnico
para, por meio deste, firmar convênio
com o Estado para realizar o licenciamento.