22/07/2008
No sobe-desce dos números e apesar das leis
e das medidas de combate, o fato é que o
desmate na Amazônia continua.
A divulgação na
semana que passou dos dados do Deter (Detecção
do Desmatamento em Tempo Real), pelo Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (Inpe), referentes ao desmatamento
de maio não trazem novidades. Foram 1.096
km² registrados, área pouco menor que
a verificada em abril, de 1.123 km². O Mato
Grosso continua liderando o ranking dos que mais
desmatam, responsável por 646 km², ou
pouco mais de 58% do total.
A despeito de todas as medidas
que o governo vem tomando para combater o desmatamento,
sequer é possível responsabilizar
este ou aquele fator por sua continuidade e nem
mesmo avaliar ainda se tais medidas, anunciadas
pelo governo no final do 2007 e no decorrer deste
ano, estão ou não sendo eficazes.
O fato é que o desmatamento continua na Amazônia
brasileira. A discussão fica restrita ao
sobe-desce mês-a-mês e aos dados do
Deter, pouco refinados. Só quando o Inpe
colocar na mesa os dados do Prodes ((Programa de
Cálculo do Desflorestamento da Amazônia
Legal), no final deste ano, e fechar as contas referentes
a 2007-2008, será possível ter um
quadro mais nítido e preciso do desmatamento
no período.
Antes da entrada em funcionamento
do Deter, em 2004, a sociedade civil cobrava transparência
e agilidade do governo. Mas com o Deter, importante
instrumento de monitoramento da dinâmica do
desmatamento, como utilizar os números para
avançar e determinar quem deve pagar essa
conta?
Nas últimas três
décadas, o estrago soma aproximadamente 700.000
km2 desmatados por corte raso em algum momento nesse
período.
Medidas para mudar o quadro não
faltam
Desde o final do ano passado,
o governo federal vem adotando medidas – que se
somam ao Plano de Ação para Prevenção
e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal,
de 2004, no sentido de reverter a tendência
de alta nas taxas de desmatamento verificadas a
partir do segundo semestre de 2007. Exatamente no
dia 24 de dezembro, publicou decreto obrigando o
recadastramento fundiário de todos os imóveis
rurais situados nos 36 municípios que mais
desmatam, estabelecendo punições a
quem comprar produtos oriundos de áreas ilegalmente
desmatadas e bloqueando financiamento de bancos
oficiais para atividades agropecuárias .
No início de 2008, um pacote
de medidas complementares ao decreto foi anunciado
prevendo reforço da Polícia Federal
na região para combater crimes ambientais;
monitoramento imediato e mensal das áreas
embargadas nos municípios críticos,
por meio de sobrevôos pelas aeronaves do Sistema
de Proteção da Amazônia (Sipam);
ajuda dos governos estaduais na fiscalização
e combate ao desmatamento, e fortalecimento de ações
de controle das atividades agropecuárias
.
Em fevereiro, resolução
do Conselho Monetário Nacional passou a exigir
o cumprimento da legislação ambiental
para concessão de crédito rural pelas
instituições financeiras privadas
e públicas. Nestas últimas, a restrição
começou a valer na data da publicação
da resolução e nas primeiras a partir
de 1º de julho.
Por fim, em maio, quando foi lançado
o PAS (Plano Amazônia Sustentável),
o governo anunciou também o Programa de Recuperação
Ambiental dos Imóveis Rurais (Pró-recuperação),
com recursos da ordem de R$ 1 bilhão, provenientes
do Orçamento Geral da União e dos
Fundos Constitucionais, vinculados ao Ministério
da Integração Nacional para recuperação
de áreas degradadas, reflorestamento, manejo
e recuperação ambiental. Mas, ao que
tudo indica, os fundos não implementaram
esta linha de crédito até o momento,
se considerarmos o desconhecimento do Pró-recuperação
por parte dos gerentes bancários e a informação
dada por produtores de que ainda não foi
implementado.
Na hipótese menos pessimista,
mesmo considerando que as medidas de estímulo
à manutenção da floresta avancem
minimamente, o ano de 2008 deverá, ainda
assim, manter taxas similares às de 2007.
Ou seja, o desmatamento vai continuar.
Uma no cravo, outra na ferradura
Para que o cenário futuro
seja favorável à manutenção
da floresta é fundamental que se cumpra a
legislação em vigor - restrição
de crédito a quem não estiver dentro
da legalidade e continuidade do embargo em áreas
desmatadas ilegalmente - apesar da resistência
e de todas as tentativas que os ruralistas vêm
fazendo para anular as medidas e desqualificar os
dados de satélite. Como a questão
econômica é decisiva para o governo
e se coloca acima da questão ambiental não
é de estranhar que, mesmo com os esforços
do MMA para que a chamada “Medida Provisória
da grilagem” (MP nº 422/08 ) não fosse
aprovada, o Senado acabou por aprová-la em
março e assim a área de terras públicas
que podem ser regularizadas sem licitação
aumentou de 500 hectares para 1500 hectares. Na
prática, isso significa que inúmeras
áreas em processo de grilagem poderão
ser legalizadas, colocando em risco a posse de pequenos
agricultores e extrativistas e incentivando a transformação
de florestas em pastos, que se inicia via extração
ilegal de madeira.
E nem mesmo as ações
já previstas para serem desenvolvidas no
âmbito do Plano de Ação para
Prevenção e Controle do Desmatamento
na Amazônia estão sendo colocadas em
prática. Um bom exemplo é o Ministério
da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
(MAPA), que tinha a responsabilidade de “promover
a intensificação do uso agro-econômico
de áreas já reflorestadas por meio
de recuperação de pastagens, fomento
à produção de culturas permanentes
e adoção universal de práticas
de uso conservacionista do solo”. A ação,
prevista no Plano, tinha entre seus objetivos reorganizar
e fortalecer o sistema de defesa agropecuária
da Amazônia; promover o uso regular de práticas
de uso conservacionista do solo; e implantar Unidades
de Teste e Demonstração de Manejo
do Solo em áreas de desmatamento em todos
os estados, além de um programa articulado
de fomento de culturas permanentes, a exemplo do
dendê, na época previsto para implantação
a partir da edição do plano em 2004.
Mas não saiu do papel.
A lacuna deixada pelo MAPA só
reforça o papel que a pecuária exerce
como vetor principal do desmatamento. Alguns números
estimados pelo MMA dão conta de que ao menos
70%, dos 700 000 km2 desmatados nos últimos
30 anos seriam ocupados por pastagens em diferentes
graus de manejo. Ou seja, quase 500.000 km2 de pecuária
já estão implantados na Amazônia.
Entre 11000 e 2003, o rebanho bovino da Amazônia
Legal cresceu 240% e passou de 26,6 milhões
para 64 milhões de cabeças. Projeções
de mercado indicam que a pecuária continuará
crescendo na região em resposta a um continuado
aumento da demanda externa e interna.
Outro aspecto relevante que coloca
em xeque as políticas do governo foi a retirada
do componente de infra-estrutura do Plano de Controle
e Prevenção aos Desmatamentos. A idéia
era estabelecer as relações diretas
e indiretas existentes entre as obras de infra-estrutura
e a dinâmica de desmatamento. Entretanto,
terminou eliminado em 2005, logo após a primeira
avaliação do plano.
A importância de reincorporar
essa variável nas ações de
prevenção e controle foi destacada
pelo Grupo de Assessoria Internacional (IAG) do
Programa Piloto para a Proteção das
Florestas Tropicais do Brasil (PPG-7). Em seu mais
recente relatório de análise das ações
do plano, o IAG aponta que "apesar de todas
as diretrizes estabelecidas em documentos governamentais,
tais como o PAS, o PPA (Plano Plurianual), o marco
legal do setor elétrico e o Plano de Desenvolvimento
Sustentável da BR 163, a efetividade do planejamento
racional da infra-estrutura na Amazônia, sobretudo
de estradas e hidrelétricas, ainda não
está assegurada".
+ Mais
Hidrelétrica amaldiçoada
21/07/2008 - Leia artigo do jornalista
Lúcio Flavio Pinto sobre a Hidrelétrica
de Belo Monte publicada na primeira edição
de junho do Jornal Pessoal, que ele edita quinzenalmente
em Belém, Pará. O texto refere-se
aos acontecimentos que envolveram índios
e o engenheiro da Eletrobras durante encontro ocorrido
em Altamira para debater sobre o projeto.
Os índios reunidos em Altamira
declararam que não querem saber da hidrelétrica
de Belo Monte no rio Xingu. Disseram-se dispostos
a morrer para impedir a obra. Mas não há
unanimidade entre eles, como não há
entre os brancos. A questão é mais
complexa do que eles parecem convencidos. E mais
dramática.
A intenção de extrair
energia do rio Xingu, no Pará, tem 28 anos.
Foi em 1980 que começaram os inventários
sobre o potencial hidrelétrico da bacia,
que drena as águas de 7% do território
brasileiro. Em 1989 o projeto para o primeiro aproveitamento
energético foi brecado pelos índios.
Só dois anos depois a Eletronorte se recuperou
do abalo que a índia Tuíra causou
quando esfregou seu facão no rosto do diretor
da empresa, José Antônio Muniz Lopes,
para demonstrar a rejeição dos primitivos
habitantes da região ao empreendimento.
A nova investida dos índios
contra o principal responsável pelos estudos
para a construção da usina de Belo
Monte, o engenheiro Paulo Fernando Vieira Souto
Rezende, há 37 anos funcionário da
Eletrobrás, interromperá a continuidade
do projeto – e por mais quanto tempo? Será
o seu golpe de morte, definitivo? Ou, pelo contrário,
dará ao governo armas para executar para
valer o empreendimento?
Muniz Lopes sofreu apenas um grande
susto quando Tuíra partiu para cima dele,
pintada para guerra, gritando e manejando sua arma
intimidadora. Rezende, porém, ficou com um
golpe profundo no braço e com escoriações
generalizadas, resultado de murros e chutes dados
por vários índios, e não mais
apenas por Tuíra, hoje com liderança
excepcional para uma mulher por conta da sua decisiva
participação nos dois episódios,
com intervalo de 19 anos.
O incremento de agressividade
entre os dois momentos serviria de indicação
de que agora a paciência dos índios
do Xingu se esgotou e eles simplesmente não
querem mais usina alguma no rio. Sua disposição
é morrer, se preciso for, até o último
deles, mas não permitir a execução
da obra, conforme anunciaram no comunicado final
do encontro, realizado entre 19 e 23 de maio, em
Altamira. As cenas chocantes criadas por guerreiros
furiosos investindo com facões, bordunas,
lanças e flechas sobre o corpo do engenheiro
carioca, atirado ao chão, rodou pelo mundo,
provocando espanto, perplexidade, indignação
e revolta. Mas também preocupação
e medo.
Depois dessas cenas, ainda mais
aberrantes para moradores de países que já
não convivem com os primitivos ocupantes
de seus territórios, completamente absorvidos
ou eliminados, qual seria o primeiro passo para
sair da inércia do susto? De imediato, e
ao menos de forma explícita, o estado de
beligerância foi interrompido pelas duas partes.
Os índios, na avaliação interna
que fizeram, no dia seguinte ao incidente, ainda
em Altamira, admitiram que se excederam e cometeram
um erro grave. Pareciam conscientes que, a partir
de agora, terão que recuperar o apoio da
opinião pública, que condenou seu
ato, para poderem sustentar o veto à hidrelétrica,
projetada para substituir Tucuruí, no rio
Tocantins, como a quarta maior do mundo (ao menos
em potência nominal de geração
de energia).
Mas também a reação
do engenheiro foi de surpreendente compreensão
e tolerância em relação à
própria agressão sofrida. Surpresa
tanto maior quanto se conhecem as características
da personalidade de Paulo Rezende no curso dos três
anos como chefe dos grupos que estudam a viabilidade
sócio-ambiental de Belo Monte. Ele teria
refreado seus impulsos, perfeitamente naturais,
para aproveitar os efeitos desgastantes sofridos
pelos índios, transferindo para a Eletrobrás
a liderança do longo e acidentado processo
pelo qual a hidrelétrica tem passado, por
conta da sistemática resistência dos
seus críticos e opositores?
Outro fato pós-agressão
parece indicar nesse sentido: a manifestação
do cacique kayapó Jair Bepe Kamró,
da aldeia Topkrô, e da índia chipaia
Maria Augusta, desaprovando a agressão dos
guerreiros kayapó e a favor da usina. Esse
primeiro apoio declarado começa a causar
fissuras num movimento até então aparentemente
monolítico. Em menor escala, essa reversão
de situação já aconteceu em
outros casos de conflitos semelhantes na Amazônia.
A mineradora Paranapanema conseguiu mudar a atitude
dos índios waimiri-atroari quanto à
exploração da jazida de cassiterita
do Pitinga, no Amazonas: de radicalmente contra,
a postura se tornou tão favorável
que os índios afastaram da área antigos
aliados, que não os acompanharam nessa mutação.
Também a Companhia Vale do Rio Doce atraiu
para si os índios xikrin do Cateté,
vizinhos das minas de Carajás e primos dos
kayapós.
Como essa conversão foi
obtida através de aplicações
significativas em obras e em dinheiro vivo, além
de muitas relações públicas,
é bem provável que os mesmos métodos
sejam repetidos em favor de Belo Monte. A Eletronorte
tem bastante experiência na matéria
e já vem atuando dessa maneira junto a algumas
tribos na área de influência da usina
de Tucuruí, como os parakanãs, e em
abordagem cautelosa no Xingu. Com a retração
dos kayapós depois da agressão ao
engenheiro, o campo está mais favorável
a esse tipo de empreitada. E as lideranças
do movimento – índias e não-índias
– sabem não só dessa possibilidade,
como dos seus efeitos quase inevitáveis,
considerada a receptividade a tal iniciativa por
parte de vários grupos indígenas.
Assim, não é de
se esperar incursões justiceiras ou intimidatórias,
como de uma carga de cavalaria à moda do
oeste americano, que no Brasil assume a forma de
manobras como a desencadeada pela Operação
Arco de Fogo, e sim trabalho de proselitismo e convencimento,
à base de benefícios concretos e de
dinheiro vivo nas mãos dos líderes
tribais. Para a eficácia dessa investida
contribuirá o prosseguimento das medidas
policiais voltadas para a apuração
da agressão em si e dos seus antecedentes.
Ainda que a Polícia Federal
de Altamira identifique individualmente os agressores
e os enquadre penalmente, de tal maneira a autorizar
seu indiciamento, denúncia e eventual pronúncia,
o processo seguirá um rito longo e complexo
até poder produzir algum resultado concreto,
se é que chegará a tanto. As implicações
antropológicas do ato são um fator
suficiente para que o caso acabe prescrito ou feneça
pelo meio do caminho. Mas a identificação,
caracterização e punição
da co-autoria, através dos supostos autores
intelectuais do delito, pode ser uma ramificação
mais expedida.
O delegado Jorge Eduardo Ferreira,
da PF de Altamira, que preside o inquérito,
quis chegar logo aos “finalmentes” reconstituindo
de pronto a trama. Organizações Não
Governamentais, sobretudo estrangeiras, e religiosos
da prelazia do Xingu e do Cimi (Conselho Indigenista
Missionário) planejaram o ataque, doutrinando
os kayapós para que eles repetissem, com
um tom de agressividade a mais, o rito de 19 anos
antes. Tudo teria sido providenciado para o revival,
agora adicionando ao personagem principal, Tuíra,
seus coadjuvantes, os guerreiros, municiados da
ferramenta indispensável para conferir dramaticidade
à cena: os facões.
Foi fácil ao delegado compor
uma história completa a partir das imagens
da câmara de televisão da loja na qual
os facões foram comprados por um dos religiosos
envolvidos na programação do encontro.
Já estabelecer o nexo causal numa instrução
processual na justiça será muito mais
problemático – e talvez até inócuo.
Se algumas pessoas ou grupos realmente articularam
a repetição da dança do facão
de Tuíra de 1989, não podiam ter imaginado
o ambiente tenso que se formaria em torno da palestra
do engenheiro da Eletrobrás. Mais do que
apresentar o projeto, como fez Muniz Lopes 19 anos
antes, ele comunicou a todos uma decisão:
a Eletrobrás vai realizar Belo Monte de qualquer
maneira, por estar convencida de que isso é
o melhor para o Brasil e que a usina é indispensável
para assegurar energia para os brasileiros, evitando
o risco de apagões e racionamentos.
Rezende declarou que Belo Monte
terá a menor relação área
inundada/capacidade instalada de energia. Seu reservatório
terá 440 quilômetros quadrados, mas
metade dessa área já é afogada
todos os anos pelo Xingu. Esses 220 km2 seriam a
única intervenção do barramento
porque a Eletrobrás decidiu que só
construirá uma usina no Xingu, abandonando
os sete aproveitamentos previstos em 1987, que provocariam
a submersão de 18 mil km2, ou os 4 mil km2
da versão anterior do complexo de Belo Monte.
Para um engenheiro, esses números soam como
a música de Bach para outros ouvidos.
Os brancos responsáveis
pelo grande projeto não têm dado a
devida atenção aos índios que
ocupam vários pontos da bacia, considerando-os
meras figuras decorativas, sem poder decisório.
Acham que podem impor-lhes fatos consumados, como
fazem aos demais brancos, que supõem menos
favorecidos em fosfato (daí certa arrogância
dos técnicos) e sabem que pouco pesam (quando
pesam) na balança do poder. A exposição
do engenheiro, no segundo dia da programação
do encontro, transcorria normalmente, mesmo com
seu tom enfático, até o momento em
que um grupo reduzido de estudantes, num setor das
arquibancadas do ginásio (que exibia grandes
claros), começou a vaiá-lo.
Como seria de esperar nessa circunstância,
Paulo Rezende tentou ironizar a reação,
contrapondo aos apupos algumas informações
que julgava de efeito. Lembrou que no ano passado
a muito criticada hidrelétrica de Tucuruí,
que começara a citar exatamente quando começou
a manifestação dos estudantes, rendera
44 milhões de reais aos municípios
na sua área de influência. Belo Monte,
se já tivesse operando, iria proporcionar
ainda mais: R$ 65 milhões. “Vocês acham
pouco? Eu acho bastante. Mas a sociedade é
que tem que avaliar o quanto representa”, disse
ele, mostrando que a participação
da Amazônia no sistema nacional de energia
subirá de 8,9% para 9,3%. Sua voz já
não era ouvida. Uma das organizadoras, ao
lado, pediu aos manifestantes para deixarem o engenheiro
concluir sua palestra, que já estava na faixa
de prorrogação de cinco minutos, “se
não ela vai ficar ainda mais longa”. Ao que
Rezende aduziu: “Se eles continuarem, vou ficar
aqui a tarde toda”. Mas quando ao barulho dos estudantes
seguiram-se cantos e gritos dos índios, ele
se sentou na sua cadeira, na ponta da mesa colocada
num dos lados da quadra de esportes. Armada do seu
facão, Tuíra se dirigiu a ele, cantando
e dançando, como da outra vez. Outros índios
cercaram o engenheiro e começaram a agredi-lo.
O que prenunciava um massacre,
contudo, acabou com bem menos danos do que os gestos
sugeriam. Talvez porque providencialmente o engenheiro
se manteve inerte e submisso (quem sabe, por pavor),
ou porque, no fundo, os guerreiros soubessem do
limite para aquele ataque. Se fosse um impulso completamente
natural, é pouco provável que dele
não resultassem ferimentos mais graves. É
uma das características dos kayapó
quando agridem: podem se tornar muito violentos
se contrariados. Outro funcionário da Eletrobrás,
que defendeu seu colega, viu o facão de um
índio subir e descer várias vezes,
roçando ameaçadoramente sua nuca.
Mas não foi ferido.
Uma vez vencido o susto imediato,
nem se preocupou mais em se defender, concentrando
sua atenção em Rezende. Ficou claro
que, esgotada a mise-en-scène, todos escapariam.
Não se pode dizer, entretanto, que o arranjo
não tenha sido mais obra dos próprios
kayapós, adestrados nesse tipo de prática,
do que o que algo eventualmente sugerido por terceiros.
Esses índios sabem muito mais sobre o que
querem e os meios de alcançar seus objetivos
do que os brancos costumam estar dispostos a admitir,
sejam parceiros deles ou seus contrários.
A maioria da opinião pública
pode ter sido convencida pelo enredo apresentado
quase de pronto pelo delegado e, a seguir, ecoado
e enriquecido em uníssono pelos defensores
da usina, dentro e fora do governo, incluindo a
imprensa: corporações internacionais
ou países poderosos estão por trás
das ONGs que deram suporte ao novo encontro dos
povos indígenas do Xingu, usando como base
local a prelazia e suas ramificações.
Esses personagens não querem
que o Brasil cresça e se torne um concorrente
no mercado internacional. Gostariam que o país
permanecesse atrasado ou deixasse que seus vastos
recursos naturais continuassem a ser explorados
por agentes externos. Os índios são
um instrumento precioso dessa estratégia:
qualquer coisa que façam tem repercussão
em todo mundo, reforçando um ambiente contrário
ao Brasil, uma das quatro potências emergentes
do planeta.
Esse é um script que pode
ser aplicado a qualquer lugar e a qualquer tema
da Amazônia, independentemente da sua demonstração.
É lançado sobre qualquer grupo que
contrarie os exploradores de carne e osso que atuam
na região, ou que questione as ações
oficiais, tendentes a favorecer estes seus parceiros.
Como há realmente empresas e países
interessados em conquistar uma presença mais
ativa na vasta fronteira amazônica, há
sempre verossimilhança nesse discurso, mesmo
que ele não resista a um teste mínimo
de consistência.
Se existem competidores interessados
em sabotar o Brasil, há também aqueles
com projetos específicos para o nosso país.
Um dos mais importantes é transferir para
a Amazônia empreendimentos eletrointensivos
com baixo valor agregado, como a mineração,
a siderurgia e a metalurgia básicas. Essas
atividades, que vêm sendo descartadas no primeiro
mundo, demandam grandes quantidades de energia.
As fontes amazônicas efetivas de energia estão
exauridas, mas a pressão desse setor produtivo
está em expansão. Logo, ele precisa
de mais energia em grande quantidade. Não
há alternativa em prazo comercialmente viável
além da fonte hídrica para esses empreendimentos.
Do contrário, se quiserem ter continuidade
(e querem), eles terão que recorrer a hipóteses
ainda mais imediatas, como o carvão, vegetal
ou mineral, que é elástico, além
do gás, limitado, ao menos por ora.
Pelo menos esses interesses, que
são concretos e podem ser apontados sem maior
elucubração, estão empenhados
em que saiam do papel projetos como o de Belo Monte
para o Xingu e os de Jirau e Santo Antônio
para o Madeira. São interesses incorporados
pelo establhishment, tanto no plano federal quanto
estadual e municipal, no que se convencionou chamar
de “os desenvolvimentistas”, quase sempre a qualquer
preço (embora haja os mais sofisticados).
Se muitos defendem as hidrelétricas
por acreditar sinceramente nelas, há os que
as combatem dotados da mesma sinceridade. Boa intenção,
porém, não costuma ser o critério
da verdade. Ela se firma pela demonstração
e só pode fazê-la aquele que domina
os elementos do raciocínio, que são
os fatos. Mesmo que consigam barrar de vez Belo
Monte e qualquer usina no Xingu, os índios
garantirão a paisagem natural, o mundo selvagem
que integram, ou pelo menos uma abordagem mais ponderada
dos seus recursos?
Impedirão que o desmatamento
prossiga, às vezes com a decisiva colaboração
de alguns dos próprios grupos indígenas?
Se a hidrelétrica pode vir a ser o arremate
dos males, na situação atual nada
assegura que até lá os fazendeiros,
madeireiros, assentados, mineradores, garimpeiros
e outros “pioneiros” não continuem a contribuir
para que esse arremate venha a ter importância
decrescente. O mal maior eles já estão
causando – e a oposição que os índios
lhes movem tem tido eficácia menor.
Em relação a essas
frentes, a ofensiva hidrelétrica, por ser
incomparavelmente mais concentrada como epicentro,
tem uma vantagem notável: ela pode ser mediada
por providências acautelatórias embutidas
no licenciamento ambiental, inexistente ou meramente
formal no caso das hordas de madeireiros, fazendeiros,
assentados, garimpeiros e outros atores atomizados,
porém corrosivos como cupins.
Pouco antes da cena de impacto
em Altamira, o Tribunal Regional Federal autorizou
a retomada dos estudos ambientais de Belo Monte,
sustados um pouco antes. Para isso, os empreendedores
aceitaram descartar a clausula de sigilo desses
levantamentos, algo completamente absurdo. Mas não
foi tocada outra cláusula igualmente inaceitável:
os futuros realizadores da obra tratando da sua
viabilidade sócio-ambiental, suspeição
que devia ser acatada como questão de princípio.
Por conta desse detalhe relevante é de se
prever mais um capítulo de litígio
nessa novela protagonizada pelo grupo Eletrobrás
e o Ministério Público Federal.
A história poderia seguir
um rumo mais racional e conseqüente. Proponho
uma sugestão a exame. A Eletrobrás
colocaria na rua um edital para a elaboração
dos termos de referência para o EIA-Rima de
Belo Monte, com prazo curto (30 dias, por exemplo).
Uma comissão decidiria sobre a melhor proposta,
comissão da qual participariam representantes
das instituições federais de pesquisa
da região e do setor elétrico. O anúncio
da decisão seria feito em sessão pública,
com direito a questionamentos à deliberação.
Definidos os parâmetros dos estudos, uma nova
concorrência seria imediatamente aberta para
os interessados em produzir o EIA-Rima. A mesma
comissão examinaria e deliberaria sobre as
propostas, anunciando o resultado em nova sessão
pública, aberta aos interessados, excluídos
os que pretendessem participar da fase executiva
de obras.
O estudo de impacto ambiental
seria financiado por um fundo público a ser
criado com esse objetivo. Os gastos seriam apropriados
como encargos da obra, a serem ressarcidos pelo
construtor, obrigado a adotar as normas do EIA-Rima,
elaborado independentemente da engenharia, mas incorporadas
a ela. O EIA-Rima seguiria o processo de audiências
públicas até ser submetido aos conselhos
do meio ambiente nacional e estadual, e aprovado.
Qualquer cidadão poderia denunciar desvios
do projeto e o Conama teria que abrir procedimento
de apuração, em rito sumaríssimo,
mas prestando contas ao distinto público.
Essa alternativa forneceria todas
as informações necessárias
para responder a várias questões,
que ainda não foram atendidas pelos projetistas
de Belo Monte. Desde uma definição
convincente sobre a viabilidade técnica e
econômica da usina, contestada por gente capaz,
até mostrar se é possível manter
a integridade do Xingu, conforme as aspirações
dos índios, ou se esse é apenas um
delirante sonho de verão. Ao invés
de partir do pressuposto de que é preciso
viabilizar a hidrelétrica, deve-se tomar
como premissa uma pergunta ainda maior: por que
Belo Monte? E para quem?
Para começar pelo verdadeiro
ponto de partida, essa pergunta tem que considerar
a atual crise de energia, mais uma vez demarcada
pelos preços recordes do petróleo,
a maior e ainda a mais barata das fontes massivas.
A crise dos hidrocarbonetos está acelerando
o estudo e a implementação de alternativas,
desde as mais conhecidas (e temidas), como o carvão
mineral, até as verdadeiramente revolucionárias,
como a solar, a eólica e a fusão nuclear.
Cada um desses caminhos tem seu cronograma e suas
condições. É preciso considerar
com acuidade cada um deles para decidir bem sobre
aquela alternativa que, num exame meramente superficial,
parece a mais evidente na Amazônia: os rios.
Podemos cometer o erro de travar
o fluxo de água em rios fantásticos
para criar uma energia que poderá vir de
fontes com menor impacto ambiental e social – e,
o que agravará ainda mais o erro, mais baratas
– quando podíamos dar a essas paisagens selvagens
um uso mais avançado e nobre (com a ciência
e a tecnologia ajustados para esses fins), na forma
de produtos de muito maior valor agregado do que
aços ou metais.
O cenário mundial poderá
mudar drasticamente se a fusão nuclear, que
produzirá energia à base de água,
sem o efeito radioativo da fissão nuclear,
se mostrar viável. Mas quanto tempo será
preciso esperar por essa revolução?
E de que maneira nos inseriremos nela? Seremos autores
ou apenas espectadores nesse novo capítulo
da história da energia produzida pelo homem?
Até lá, como resolveremos os problemas
de hoje, alguns deles se tornando de ontem?
Respostas a essas e muitas outras
perguntas só serão dadas se os especialistas
examinarem o ambiente, com os propósitos
do saber e do conhecimento, antes que outros personagens
se apresentem, com outros papéis. O benefício
de projetos de grande porte como o de Belo Monte
é que eles permitem esse trabalho prévio,
de inventário, de sondagem. Sem os vícios
que o processo apresenta atualmente, o EIA-Rima
da hidrelétrica pode ser a oportunidade de
ouro, que falta nas outras frentes, como a dos madeireiros
ou dos agricultores.
O protesto dos índios do
Xingu pode servir para dar início a esse
momento, mas não como resposta para as dúvidas,
que subsistiram à cena de violência.
A partir daí, a busca terá que ser
coletiva. Neste cenário, ninguém é
o único artista nem o dono da verdade, por
mais que tenha um discurso pronto e acabado (ainda
que lacunoso), como certos críticos das hidrelétricas,
ou tenha uma roupagem cenográfica de impacto
e um direito primal, como os índios. O Brasil
é formado por todos, mas é muito maior
do que cada um.
Lucio Flavio Pinto