18 de
Abril de 2009 - Bruno Bocchini - Repórter
da Agência Brasil - Valter Campanato/Abr -
São Sebastião e Ubatuba (SP) - A legislação
ambiental, imprescindível para a preservação
da Mata Atlântica, ameaça o desenvolvimento
das comunidades tradicionais – indígenas,
descendentes de quilombolas e caiçaras –
que convivem com a mata há centenas de anos.
As diversas leis ambientais criadas
nos últimos 40 anos, que possibilitaram a
instituição de parques, reservas e
estações ecológicas, praticamente
congelaram a devastação da Mata Atlântica.
No entanto, as normas bloquearam também a
continuidade das atividades tradicionais executadas
pelas populações que, reconhecidamente,
foram as maiores responsáveis pelo que ainda
restou do bioma.
Caiçaras, descendentes
de quilombolas e indígenas mantêm aspectos
culturais seculares e praticam, sobretudo, agricultura
voltada à subsistência. São
reconhecidos por conviver com a mata sem destruí-la.
No entanto, parte das terras utilizada há
centenas de anos por essa população
foi sobreposta por unidades de preservação
ambiental. Parte considerável dessa população
foi impedida de expandir suas roças, de caçar
e de extrair da mata produtos que ajudavam na sobrevivência.
O modo como foram aplicadas as
normas ambientais nos últimos anos acabou
por causar a expulsão dessas comunidades
tradicionais de suas terras e abriu espaço
para que outros grupos, menos responsáveis
ambientalmente, ingressassem na área da mata,
de acordo com Nilto Tatto, pesquisador do Instituto
Socioambiental (ISA), organização
da sociedade civil de interesse público.
“Era necessária uma postura
propositiva de dialogar com as comunidades para
que elas pudessem continuar vivendo e mantendo a
relação que sempre tiveram com o meio
ambiente. E não da forma como o Estado fez
nos últimos anos, principalmente a partir
da criação dos parques, que originou
um processo de expulsão dessas comunidades”,
afirma.
“Outros agentes econômicos
podem ir lá e tomar o lugar, e o estrago
é muito maior na medida em que essas comunidades
não estão lá para ocupar da
forma como tradicionalmente a área foi ocupada”,
ressalta.
Hoje, na Mata Atlântica,
vivem cerca de 70 povos indígenas em centenas
de aldeias e mais de 370 comunidades quilombolas.
No mesmo espaço, foram criadas aproximadamente
1.400 unidades de preservação ambiental
federais e estaduais, como parques, reservas, estações
ecológicas e reservas particulares do patrimônio
natural.
“Você perde essa riqueza
que é a diversidade social que há
na Mata Atlântica dessas comunidades tradicionais,
como também o papel que essas comunidades
tiveram de manter essa floresta em pé”, destaca
Tatto.
A roça de coivara é
um bom exemplo das atividades dos povos tradicionais
que preservaram a mata. Consiste num sistema de
rodízio na utilização da terra,
sem a necessidade de expansão da área
cultivada.
Agenor de Matos, 97 anos, foi
pescador e agricultor na região da Mata Atlântica,
no município de São Sebastião,
litoral paulista. Viveu na mata antes e depois da
criação das áreas de preservação.
Depois da criação do Parque da Serra
do Mar, ele teve de abandonar a agricultura e ficar
só com a pesca. Hoje está aposentado.
“A gente não pode mais derrubar mata. Mas,
antigamente, a gente derrubava, fazia roça
de arroz, milho, mandioca. A gente não comprava
nada. Só o sal que vinha de fora. A gente
colhia, vendia e ainda tinha pra comer”, relata.
José Vieira, descendente
de quilombolas, vive há 50 anos no núcleo
Picinguaba do Parque da Serra do Mar, no município
de Ubatuba. Quando chegou, pescava e fazia roça.
Nenhum gênero alimentício vinha de
fora. Sobreviviam com suas próprias atividades.
“Antes, a comida era daqui mesmo,
o feijão, o café apanhava aqui. Era
o peixe que eu pegava, era o caldo de cana, eram
as galinhas que eu criava. Depois que virou Parque
Estadual da Serra do Mar, a comunidade perdeu chão,
porque a vida era fazer uma roça e a própria
comunidade manejava. Depois que entrou o parque,
não pudemos fazer nada. Apertou um pouco
para as pessoas, a agricultura familiar ficou meio
desativada”, ressalta.
Mas é no núcleo
Picinguaba, do Parque Estadual da Serra do Mar,
que uma nova experiência com as comunidades
tradicionais procura estabelecer um equilíbrio
entre cumprir a lei ambiental e preservar as atividades
das populações que já viviam
no local muito antes da criação das
áreas de conservação.
“Essas comunidades viveram até
2004 sob situação de forte pressão,
que gerou uma exclusão social muito grave,
porque a legislação ambiental que
incidia sobre a gestão da unidade previa
que essas comunidades fossem indenizadas, removidas
e reassentadas em outro local”, explica a gestora
do parque Eliane Simões.
A partir de então, as comunidades,
em parceria com a administração do
parque, encontraram uma solução jurídica
para o impasse. Cruzando várias legislações,
tanto do ponto de vista social quanto ambiental,
criaram o que é chamado de “plano de uso
tradicional”.
“Ele é um pacto social,
é um acordo estabelecido com todos os órgãos
gestores para que a comunidade possa permanecer
na área. Ela tem direitos adquiridos de permanência
e desenvolvimento das suas atividades, seu hábitos
culturais cotidianos”, explica a gestora.
Duas comunidades quilombolas da
região já conseguiram concretizar
o pacto. Na prática, o plano consiste num
cadastramento de todos os ocupantes, uma caracterização
de como vivem, seus hábitos e suas dependências.
Também define o desenvolvimento de projetos
para implantação de uma série
de atividades para desenvolvimento sustentável
e as áreas e locais apropriados para que
essas práticas possam se desenvolver.
As comunidades que fizeram o pacto
já têm demarcados territórios
dentro de suas áreas onde podem construir
novas edificações, plantar e abrir
áreas de plantio, assim como extrair recursos
da floresta. Mas, com a preocupação
agora de adaptar suas técnicas à sustentabilidade.
“Quando chegamos aqui vimos a
problemática dos agricultores, a pressão
dos institutos florestais, os meios de conservação,
proibindo que eles praticassem algo que fazem há
muitos anos. Então, a gente começou
a extrair a polpa da [palmeira] jussara [símbolo
da Mata Atlântica] de um jeito sustentável,
não é arrancar todos os cachos. A
gente escolhe um para deixar, porque os passarinhos
usam, a palmeira é vital para a vida da floresta”,
explica Marcelo Bueno, coordenador do Instituto
de Permacultura e Ecovilas da Mata Atlântica
(Ipema), que auxilia os agricultores tradicionais
a explorar a mata de modo sustentável, sem
deixar de realizar as atividades tradicionais.
Um grupo de índios Guarani,
que habita uma reserva indígena no município
de São Sebastião, em meio a Mata Atlântica,
permanece realizando suas atividades tradicionais,
mas incorporaram novos meios de cultivo que preservam
a mata nativa. “Passamos a usar mudas de pupunha,
mudas de açaí, que também dão
em palmeiras, para preservar a palmeira jussara.
E a gente está tendo ótimos resultados”,
diz o cacique Mauro Samuel dos Santos.