25/08/2009 - A articulação
realizada pela CNPI, para aprovar um novo Estatuto
para os Povos Indígenas, começa a
se refletir no Congresso A proposta foi apresentada
pelo ministro da Justiça ao presidente da
Câmara dos Deputados, que recebeu também
uma comissão de lideranças indígenas.
A nova proposta de Estatuto dos
Povos Indígenas é resultado de dez
seminários regionais e várias reuniões
promovidas pela Comissão Nacional de Política
Indigenista (CNPI), que reúne representantes
de órgãos do governo, indigenistas
e lideranças indígenas As discussões
foram necessárias para atualizar o Estatuto
do Índio, de 1973, defasado em relação
à Constituição Federal de 1988
e à Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT). O resultado das
discussões foi apresentado no início
do mês ao deputado Michel Temer, presidente
da Câmara, onde está parada, há
15 anos, a tramitação do Projeto de
Lei (PL) nº 2057/91 do Estatuto das Sociedades
Indígenas.
A proposta da CNPI, levada pelo
ministro da Justiça, Tarso Genro, tem 249
artigos: institui o poder de polícia da Fundação
Nacional do Índio (Funai); trata da gestão
territorial e ambiental; das atividades econômicas
indígenas e do uso sustentável dos
recursos naturais renováveis; regulamenta
a exploração de recursos minerais
e hídricos, com direito de veto das comunidades
afetadas; trata da consulta prévia; traz
a possibilidade de os povos indígenas serem
remunerados por serviços ambientais e também
dispõe sobre saúde e educação,
entre outros temas. Veja a proposta de Estatuto
da CNPI aqui.
Na última reunião
da comissão, que ocorreu dias 13 e 14 de
agosto, o Secretário de Assuntos Legislativos
do Ministério da Justiça, Pedro Abramovay,
declarou o compromisso do governo de ter uma proposta
aprovada no Congresso ainda este ano. O objetivo
é que seja posto em julgamento o recurso
que paralisa a tramitação. Com isso,
o PL nº 2057/91 seria submetido a emendas de
plenário e depois poderia ser criada uma
Comissão Especial para analisá-las
e apresentar um substitutivo. Uma vez que seja aprovado
na Câmara, o PL deve ser analisado pelo Senado,
e – se sofrer alterações – retornar
à Câmara. Abramovay disse que a entrega
da proposta, enfatizada por ele como uma prioridade
do governo, “foi bem recebida por Temer, que a considera
uma agenda positiva”.
Outra prioridade da CNPI é
o projeto de lei que cria o Conselho Nacional de
Política Indigenista, encaminhado no ano
passado pelo governo ao Congresso. Resultado de
um ano de trabalho da CNPI, o Conselho, uma vez
estabelecido, substituirá a Comissão,
criada em caráter temporário, e sua
missão será deliberar sobre a política
nacional para os povos indígenas.
O clima anti-indígena no
Congresso
A discussão sobre a nova
lei que vai estabelecer direitos e deveres dos índios
de acordo com a Constituição Federal
chega em um momento no qual o Congresso está
mobilizado para mudar regras e impedir demarcações.
Enquanto o PL do novo Estatuto
parou de tramitar em 1994, pipocaram dezenas de
proposições que alteram a forma como
as Terras Indígenas são demarcadas,
autorizam a construção de hidrelétricas
e hidrovias e regulamentam a exploração
de minérios em TIs, entre outras.
Em 2008 foram apresentadas pelo
menos 15 novas proposições sobre direitos
indígenas. A maioria delas visa a restringir
os direitos garantidos na CF de 1988, principalmente
submetendo a demarcação de terras
ao Congresso Nacional. Deputados apresentaram seis
novos projetos de decretos legislativos para sustar
atos do executivo relativos a demarcação
de terras indígenas. Veja mais sobre as proposições
aqui.
Parlamentares de Mato Grosso,
Mato Grosso do Sul e de Santa Catarina, por exemplo,
apresentaram proposições para sustar
as portarias do ministro da Justiça que declaram
as Terras Indígenas Manoki, dos índios
de mesmo nome, TI Batelão, dos Kaiabi, no
Mato Grosso, e a Terra Indígena Ibirama La-Klanô,
dos Xokleng, Kaingang e Guarani, em Santa Catarina.
E isso, apesar de haver entendimento no Supremo
Tribunal Federal (STF) de que as portarias que declaram
uma terra como indígena e os decretos que
homologam as demarcações ou que regulamentam
a forma como as demarcações são
feitas, são atos administrativos, e que,
portanto, estariam fora do controle do Congresso
Nacional - que alcança apenas os atos normativos
do Executivo.
Até mesmo o decreto nº
1775/96 ,do Presidente da República, que
dispõe sobre o procedimento administrativo
de demarcação das terras indígenas,
é alvo de uma proposta que pretende suspende-lo.
Também a iniciativa da Funai, de finalmente
buscar solução adequada para os índios
Guarani do Mato Grosso do Sul, repercutiu negativamente
na Câmara dos Deputados. Duas propostas buscam
sustar as portarias da Funai de identificação
das terras da maior população indígena
do País – os Guarani – e a que vive a situação
mais dramática. Mortes recorrentes de crianças
por desnutrição, desestruturação
social, suicídios causados pela privação
de acesso à terra e aos recursos naturais
necessários à sua sobrevivência
física e cultural freqüentam assiduamente
as páginas dos jornais. Veja mais aqui.
O desafio é conseguir apoio
e mobilização suficientes para fazer
com que o PL do Estatuto volte a tramitar e, assim,
fazer com que as discussões relativas aos
direitos indígenas sejam realizadas dentro
do seu contexto, em vez de distribuídas em
diferentes proposições.
Demarcação é
competência do Executivo e não do Congresso
Nacional
O ministro Ayres Britto do STF,
relator da ação popular contra a demarcação
da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em
Roraima, destacou, em seu extenso voto, durante
o julgamento, que a competência pela demarcação
é do Executivo e não do Legislativo,
como querem alguns parlamentares federais. Em um
item especificamente dedicado ao tema, o ministro
ajuiza “que somente à União compete
instaurar, sequenciar e concluir formalmente o processo
demarcatório das Terras Indígenas,
tanto quanto efetivá-lo materialmente. Mas
instaurar, sequenciar, concluir e efetivar esse
processo por atos situados na esfera de atuação
do Poder Executivo Federal, pois as competências
deferidas ao Congresso Nacional, com efeito concreto
ou sem densidade normativa, se esgotam nos seguintes
fazeres...” e passa a citar a autorização
para exploração de recursos minerais
e hídricos em terras indígenas.
Já que as coordenadas constitucionais
são no sentido de que cabe exclusivamente
ao Poder Executivo realizar as demarcações,
existem propostas no Congresso Nacional para alterar
a própria Constituição Federal,
indo de encontro ao entendimento de que os artigos
que garantem os direitos indígenas são
cláusulas pétreas e, portanto, não
podem ser alterados.
Depois da segunda parte do julgamento
da TI Raposa-Serra do Sol, que confirmou a demarcação,
parlamentares de Roraima, como o senador Augusto
Botelho, propuseram projetos de lei que alteram
o Estatuto do Índio, para permitir, por exemplo,
que terceiros não-indígenas possam
ter acesso, por meio de parceria, aos recursos naturais
exclusivos dos índios. Existem também
várias propostas na Câmara e no Senado
para regulamentar a exploração de
recursos minerais e hídricos.
Obras e a falta de Consulta Prévia
A ausência de definição
do que seja de relevante interesse público
da União, para justificar as obras que podem
ser construídas excepcionalmente em Terras
Indígenas, levou um deputado do Mato Grosso
a propor um Projeto de Lei Complementar (PLP) que
declara rodovias, ferrovias e hidrovias como tais.
Enquanto não houver a definição
do que seja o relevante interesse da União
não pode haver obras em Terras Indígenas
que atentem contra o direito dos índios à
posse permanente da terra e de usufruto exclusivo
dos recursos naturais que nelas existem.
Do Senado veio ainda a proposta
do senador Edison Lobão Filho, do PMDB/MA,
de alterar o Estatuto do Índio para propor
critérios de imputabilidade aos indígenas.
O senador, filho do ministro das Minas e Energia,
Edison Lobão, agiu possivelmente motivado
pelo episódio que envolveu os Kayapó
e um engenheiro da Eletronorte, em maio do ano passado,
durante encontro para discutir hidrelétricas
em Altamira (PA). Esse encontro ocorreu vinte anos
depois de outro realizado na mesma cidade de Altamira,
quando os índios recusaram a proposta da
Eletronorte de construção da Usina
Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio XIngu.
Em 2008, a empresa voltou com um projeto mais enxuto,
mas ainda danoso aos direitos indígenas.
Veja mais aqui. Não foram apresentados no
Congresso projetos que busquem a eficiência
no uso da energia, em prédios públicos,
por exemplo, nem de incentivo a novas tecnologias
de geração de energia ou de repotenciação
de usinas hidrelétricas já instaladas.
Criminalizar os índios que protestam em defesa
de suas terras e recursos naturais é bem
mais fácil.
O direito de consulta dos povos
indígenas em relação a medidas
administrativas e legislativas que os afetem, previsto
na Convenção 169 da OIT, em vigor
no Brasil desde 2004, poderia ajudar a criar um
espaço de diálogo entre o poder público
e comunidades indígenas em casos específicos,
mas não vem sendo aplicado, o que pode tornar
mais agudos os conflitos como no caso dos Kayapó
e a Hidrelétrica Belo Monte. O Decreto Legislativo
que autorizou a construção da obra
em 2005 não consultou as comunidades indígenas
que por ela serão afetadas.
Nesse ambiente hostil aos direitos
indígenas, mobilização e fortes
alianças serão fundamentais para a
aprovação de uma lei que faça
jus aos avanços obtidos nos últimos
vinte anos.
ISA, Ana Paula Caldeira Souto Maior.