CI-Brasil divulga posicionamento
sobre hidrelétrica; a ONG trabalha com índios
Kayapó há mais de 18 anos. Brasília,
11 de fevereiro de 2010 — Contexto: A concepção
original da hidrelétrica de Belo Monte, que
vem se remodelando desde o regime militar, ganhou
destaque internacional e acabou engavetado devido
à forte pressão dos povos indígenas
e ambientalistas no final da década de 1980.
Vinte anos depois, a Usina Hidrelétrica (UHE)
Belo Monte volta repaginada como uma das principais
obras do Plano de Aceleração do Crescimento
(PAC) do governo Lula.
O projeto ressurge como uma obra
estratégica, apresentada por meio de um Estudo
de Impacto Ambiental (EIA) de mais de 20 mil páginas,
como a possível terceira maior hidrelétrica
do mundo, perdendo apenas para a usina Três
Gargantas (China) e para Itaipu (Brasil-Paraguai).
A hidrelétrica de Belo Monte propõe
o barramento do rio Xingu com a construção
de dois canais que desviarão o leito original
do rio, com escavações da ordem de
grandeza comparáveis ao canal do Panamá
(200 milhões m3) e área de alagamento
de 516 km2, o equivalente a um terço da cidade
de São Paulo.
Questão energética:
A UHE de Belo Monte vai operar muito aquém
dos 11.223 MW aclamados pelos dados oficiais, devendo
gerar em média apenas 4.428 MW, devido ao
longo período de estiagem do rio Xingu, segundo
Francisco Hernandes, engenheiro elétrico
e um dos coordenadores do Painel dos Especialistas,
que examina a viabilidade da usina. Em adição,
devido à ineficiência energética,
Belo Monte não pode estar dissociada da ideia
de futuros barramentos no Xingu. Belo Monte produzirá
energia a quase 5.000 km distantes dos centros consumidores,
com consideráveis perdas decorrentes na transmissão
da energia.
Esse modelo ultrapassado de gestão
e distribuição de energia a longas
distâncias indica que o governo federal deveria
planejar sua matriz energética de forma mais
diversificada, melhor distribuindo os impactos e
as oportunidades socioeconômicas (ex.: pequenas
usinas hidrelétricas, energia de biomassa,
eólica e solar) ao invés de sempre
optar por grandes obras hidrelétricas que
afetam profundamente determinados territórios
ambientais e culturais, sendo que as populações
locais, além de não incluídas
nos projetos de desenvolvimento que se seguem, perdem
as referências de sobrevivência.
Questão ambiental: A região
pleiteada pela obra apresenta incrível biodiversidade
de fauna e flora. No caso dos animais, o EIA aponta
para 174 espécies de peixes, 387 espécies
de répteis, 440 espécies de aves e
259 espécies de mamíferos, algumas
espécies endêmicas (aquelas que só
ocorrem na região), e outras ameaçadas
de extinção. O grupo de ictiólogos
do Painel dos Especialistas tem alertado para o
caráter irreversível dos impactos
sobre a fauna aquática (peixes e quelônios)
no trecho de vazão reduzida (TVR) do rio
Xingu, que afeta mais de 100 km de rio, demonstrando
a inviabilidade do empreendimento do ponto de vista
ambiental. Segundo os pesquisadores, a bacia do
Xingu apresenta significante riqueza de biodiversidade
de peixes, com cerca de quatro vezes o total de
espécies encontradas em toda a Europa. Essa
biodiversidade é devida inclusive às
barreiras geográficas das corredeiras e pedrais
da Volta Grande do Xingu, no município de
Altamira (PA), que isolam em duas regiões
o ambiente aquático da bacia. O sistema de
eclusa poderia romper esse isolamento, causando
a perda irreversível de centenas de espécies.
Outro ponto conflituoso é
que o EIA apresenta modelagens do processo de desmatamento
passado, não projetando cenários futuros,
com e sem barramento, inclusive desconsiderando
os fluxos migratórios, que estão previstos
nos componentes econômicos do projeto, como
sendo da ordem de cerca de cem mil pessoas, entre
empregos diretos e indiretos.
Questão cultural e impactos
da obra sobre as populações indígenas:
O projeto tem desconsiderado o fato de o rio Xingu
(PA) ser o ‘mais indígena’ dos rios brasileiros,
com uma população de 13 mil índios
e 24 grupos étnicos vivendo ao longo de sua
bacia. O barramento do Xingu representa a condenação
dos seus povos e das culturas milenares que lá
sempre residiram.
Por que os Kayapó, assim
como os povos indígenas do Parque Indígena
do Xingu, que estão na cabeceira do rio,
têm se manifestado ferozmente contrários
ao barramento do Xingu, que acontecerá a
quase 1.000 km de distância de suas terras?
Porque para os índios, o rio é o mundo,
lá estão seus ancestrais, suas tradições,
seus mitos, seus territórios sagrados, sua
cultura. E mesmo a mil quilômetros de distância
de onde vivem, o barramento do Xingu terá
um impacto direto nas suas vidas.
Na cosmologia indígena,
todos os seres estão ligados por uma única
teia, que de forma alguma se dissocia da sua vida.
O rio tem forte simbolismo para os povos indígenas
do Xingu. Sob a sua ótica, ele é continuação
da própria casa e da própria alma;
é um ser vivo que constitui a essência
da cultura e da sobrevivência indígena.
O projeto, aprovado para licitação,
embora afirme que as principais obras ficarão
fora dos limites das Terras Indígenas, desconsidera
e/ou subestima os reais impactos ambientais, sociais,
econômicos e culturais do empreendimento.
Além disso, é esperado que a obra
intensifique o desmatamento e incite a ocupação
desordenada do território, incentivada pela
chegada de migrantes em toda a bacia e que, de alguma
forma, trarão impactos sobre as populações
indígenas.
Como já exposto, o Trecho
de Vazão Reduzida afetará mais de
100 km de rio e isso acarretará em drástica
redução da oferta de água.
Os impactos causados na Volta Grande do Xingu, que
banha diversas comunidades ribeirinhas e duas Terras
Indígenas - Juruna do Paquiçamba e
Arara da Volta Grande, ambas no Pará -, serão
diretamente afetadas pela obra, além de grupos
Juruna, Arara, Xypaia, Kuruaya e Kayapó,
que tradicionalmente habitam as margens desse trecho
de rio. Duas Terras Indígenas, Parakanã
e Arara, não foram sequer demarcadas pela
Funai. A presença de índios isolados
na região, povos ainda não contatados,
foram timidamente mencionados no parecer técnico
da Funai, como um apêndice.
A noção de afetação
pelas usinas hidrelétricas considera apenas
áreas inundadas como “diretamente afetadas”
e, por conseguinte, passíveis de compensação.
Todas as principais obras ficarão no limite
das Terras Indígenas que, embora sejam consideradas
como “indiretamente afetadas”, ficarão igualmente
sujeitas aos impactos físicos, sociais e
culturais devido à proximidade do canteiro
de obras, afluxo populacional, dentre outros. O
EIA desconsidera ou subestima os riscos de insegurança
alimentar (escassez de pescado), insegurança
hídrica (diminuição da qualidade
da água com prováveis problemas para
o deslocamento de barcos e canoas), saúde
pública (aumento na incidência de diversas
epidemias, como malária, leishmaniose e outras)
e a intensificação do desmatamento,
com a chegada de novos migrantes, que afetarão
toda a bacia.
Violação de direitos
humanos: As populações tradicionais
que habitam a área onde a usina foi planejada
não foram suficientemente ouvidas nas audiências
públicas realizadas para debater o projeto,
como determina a legislação brasileira
e a Convenção 169 da ONU, ratificada
pelo Brasil em 20/6/2002, que garante aos índios
o direito às oitivas, ou seja, o direito
de serem informados de maneira objetiva sobre os
impactos da obra e de terem sua opinião ouvida
e respeitada. Foram realizadas apenas três
audiências públicas, consideradas insuficientes
pelo Ministério Público Federal. Infelizmente,
no momento atual, após a licitação
da obra, resta a apelação para os
tribunais internacionais, uma vez que os recursos
jurídicos na instância nacional não
têm sido julgados em tempo hábil com
relação ao processo de liberação
da obra. Os procuradores do Ministério Público
que têm se manifestado contra a liberação
da licença têm sido constrangidos pelos
advogados da União.
Polêmicas: O processo de
licenciamento da UHE Belo Monte tem sido cercado
por polêmicas, incluindo ausência de
estudos adequados para avaliar a viabilidade ambiental
da obra, seu elevado custo, a incerteza dos reais
impactos sobre a biodiversidade e as populações
locais, a ociosidade da usina durante o período
de estiagem do Xingu, e a falta de informação
e de participação efetiva das populações
afetadas nas audiências públicas.
No final de dezembro de 2009,
os técnicos do Ibama emitiram parecer contrário
à construção da usina (Parecer
114/09, não publicado no site oficial), onde
afirmam que o EIA não conseguiu ser conclusivo
sobre os impactos da obra: “o estudo sobre o hidrograma
de consenso não apresenta informações
que concluam acerca da manutenção
da biodiversidade, a navegabilidade que garante
a segurança alimentar e hídrica das
populações do trecho de vazão
reduzida (TVR) e os impactos decorrentes dos fluxos
migratórios populacionais, que não
foram dimensionados a contento”. A incerteza sobre
o nível de estresse causado pela alternância
de vazões não permite inferir com
segurança sobre a manutenção
dos estoques de pescado e das populações
humanas que desses dependem, a médio e longo
prazos. Ainda segundo o parecer técnico,
para “a vazão de cheia de 4.000m3/s, a reprodução
de alguns grupos de peixes é apresentada
no estudo como inviável”, ou seja, o grau
de incerteza denota um prognóstico extremamente
frágil.
No início deste ano (01/02/10),
o governo federal anunciou a liberação
da licença prévia para a construção
da UHE Belo Monte sob 40 condicionantes, nem todas
esclarecidas. A licença foi liberada num
tempo recorde e o leilão, que deveria acontecer
em abril, foi adiantado para o início de
março deste ano. Como a única voz
dissonante, o ministro do Meio Ambiente enfatizou
a concessão de R$1,5 bilhão como medidas
mitigatórias ao projeto, um valor relativamente
pequeno em relação ao custo estimado
da obra (R$30 bilhões) e incerto para os
impactos que ainda se desconhece.
Vale lembrar que uma bacia e seus
povos repletos de história e diversidade
social, ambiental e cultural nunca terão
preço capaz de compensar tamanha riqueza.
CONSERVAÇÃO INTERNACIONAL
(CI-Brasil)
A Conservação Internacional (CI) foi
fundada em 1987 com o objetivo de promover o bem-estar
humano fortalecendo a sociedade no cuidado responsável
e sustentável para com a natureza, amparada
em uma base sólida de ciência, parcerias
e experiências de campo. Como uma organização
não-governamental global, a CI atua em mais
de 40 países, em quatro continentes. A organização
utiliza uma variedade de ferramentas científicas,
econômicas e de conscientização
ambiental, além de estratégias que
ajudam na identificação de alternativas
que não prejudiquem o meio ambiente. Para
mais informações sobre os programas
da CI no Brasil, visite www.conservacao.org