27 de agosto de
2012 - A população indígena
no Brasil aumentou segundo o censo Populacional
2010, do IBGE. Os resultados já eram
esperados pela presidenta da Fundação
Nacional do Índio (Funai), Marta Maria
do Amaral Azevedo. Ela é cientista
social e demógrafa especializada em
população indígena (está
licenciada das atividades de pesquisadora
e docente do Núcleo de Estudos de População
da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp).
Segundo Marta, o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) aperfeiçoou a logística
de coleta de dados e a metodologia de apuração
de informações. Além
disso, houve, desde a Constituição
de 1988, melhoras nas políticas indigenistas
que resultaram em aumento da qualidade de
vida e menor mortalidade.
Apesar do avanço, a presidenta da Funai
aponta para os riscos das disputas fundiárias
e de intolerância com indígenas.
A seguir os principais trechos de entrevista
exclusiva que concedeu à Agência
Brasil, a primeira desde que tomou posse (em
abril passado).
Agência Brasil – O
censo registrou aumento da população
indígena. Esse dado a surpreendeu?
Marta Azevedo - O que aconteceu
nesse censo de 2010 é que, além
de perguntar raça, cor da pele para
todas as pessoas, se perguntou ao indígena
a qual etnia pertence e quais línguas
fala. Não tem nada novo, o fenômeno
se deve a uma recuperação demográfica
dos povos indígenas no Brasil.
ABr - Recuperação?
Marta - Houve de fato uma
recuperação demográfica
desde os anos 1960-1970, sendo que a gente
viu isso no censo de 1991. Antes disso, não
tem como medir. Em geral, toda população
humana, quando há perdas muito sérias,
ocorre uma recuperação demográfica.
No Brasil, as estimativas da população
do século 16 variam de 3 milhões
a 7 milhões, não existe exatamente
um trabalho de demografia histórica.
Mas, baseado em trabalhos de outras regiões
da América Latina, faz-se essa estimativa,
e eram mais de mil povos e, com certeza, mais
de mil línguas faladas. Quanto ao aumento
do número de etnias, muitos antropólogos
têm escrito sobre isso a respeito de
fenômenos de autoidentificação
de pessoas que pertencem a um determinado
povo, mas que nos últimos anos passaram
a não se declarar como pertencendo
a esse povo e justamente por todo esse fenômeno
de recuperação demográfica
e de valorização da identidade
étnica. São pessoas que estavam
se declarando como caboclos, pardos, e que
passam a se declarar como povos indígenas
específicos. Tem também, ainda,
um outro fenômeno, é a declaração
de etnias que os antropólogos consideravam
antigamente como se fosse um subgrupo.
ABr – Também melhorou
a cobertura do censo?
Marta - Melhorou muito.
Em 2007, criou-se um grupo de trabalho entre
o IBGE e a Funai juntamente com o apoio da
Associação Brasileira de Estudos
Populacionais (Abep), da Associação
Brasileira de Antropologia (ABA), e de outras
instituições para fazer coincidir
as malhas cartográficas das terras
indígenas com os setores censitários.
Por isso que os resultados saíram com
a lista das terras indígenas e mapas.
Está tudo disponibilizado também
no site do IBGE.
ABr – A demarcação
de terras indígenas depois da Constituição
de 1998 ajudou?
Marta - Olha, com certeza
a terra politicamente demarcada, assegurada
e efetivamente disposta a esses povos indígenas
traz uma melhor qualidade de vida para essa
população, traz uma segurança,
a possibilidade de um futuro. O serviço
de atendimento à saúde dos povos
indígenas, que vem melhorando nos últimos
anos, impacta também os indicadores
de mortalidade infantil, que vem caindo.
ABr – Mas se compararmos
a situação da população
não indígena com população
indígena, o atendimento à saúde,
assim como a escolaridade, é muito
desfavorável aos indígenas...
Marta - As populações
negra e indígena são as que
têm piores indicadores de qualidade
de vida Isso tudo tem uma série de
fatores que vão afetando e, com certeza,
um dos quais é a segurança da
terra.
ABr - E a questão
do ensino indígena?
Marta - Esse direito a ter
uma escola específica e diferenciada
na sua própria aldeia, de ter professor
que fala sua língua é uma coisa
muito recente, dos anos 90 para cá.
Se olharmos o perfil etário e o número
de matrículas no Censo Escolar, que
contabiliza todo ano as escolas indígenas,
número de matrículas, língua
de ensino..., veremos com certeza tem muita
criança de 1ª a 4ª série,
e depois vai diminuindo bastante de 5ª
a 8ª. Pouca gente com acesso a segunda
parte do ensino fundamental, pouquíssima
gente com acesso ao ensino médio, e
menos acesso ao ensino superior. A gente tem
que garantir cada vez mais esse acesso. Acho
que está aumentando o número
de escolas de ensino médio nas terras
indígenas, mas a qualidade deixa a
desejar.
ABr - Por que deixa a desejar?
Marta - Muitas vezes falta
formação para os técnicos
das secretarias estaduais e municipais de
Educação, porque muitas vezes
a escola indígena é longe, distante.
A própria secretaria estadual de Educação
não tem como ir até lá
para fazer acompanhamento, não tem
uma equipe para fazer esse acompanhamento.
ABr - Falta professor qualificado?
Marta - Os professores indígenas
têm sido formados nos cursos de magistérios
indígenas. Isso tem sido feito pelos
estados com o apoio do Ministério da
Educação e com participação
das universidades. Muitas universidades estão
envolvidas nesse processo de formação
dos professores, mas ainda falta muito. A
população está crescente
e a cada ano tem que abrir novas escolas.
ABr - Voltando ao censo.
O que explica o aumento de índios em
São Paulo?
Marta - Em São Paulo,
mais de 90% da população autodeclarada
indígena estão fora das terras
indígenas. O que isso quer dizer? São
indígenas que se autodeclararam, mas
que estão vivendo nas cidades, ou então
em terras indígenas ainda a serem demarcadas.
ABr - São indígenas
que migraram?
Marta - Até o censo
de 2000, muitos eram pessoas de outros estados,
principalmente do Nordeste. Mas a gente não
sabe qual é o perfil dessa população,
não tem ainda estudos exatos apurados
sobre o perfil dessa população.
Quem são essas pessoas que se autodeclaram
indígenas, que não reconhecem
uma etnia? Foi a primeira vez que se perguntou
sobre a etnia.
ABr - De alguma forma esses
dados ajudam a fixar ou aperfeiçoar
as políticas da Funai? Quais as prioridades?
Marta - As prioridades da
Funai continuam sendo as mesmas: promover
e defender os direitos dos indígenas
no Brasil, ou seja, tem a ver com demarcação
de terra, identificação de marcação
de terra, proteção territorial,
fiscalização, manejo ambiental
dos territórios, tem a ver com uma
discussão com os povos indígenas
que estão nas terras indígenas
já demarcadas ou em processo de demarcação.
O que vão fazer com essa terra? Quais
são as alternativas para o futuro dessa
população nessas terras? Acho
que a grande virada da Funai, a grande mudança
que houve nos últimos anos é
que a Funai não tem mais aquela visão
que se tinha de assistencialista.
ABr - Por trás dessa
visão assistencialista, havia uma ideia
de integrar as culturas indígenas à
cultura central, digamos assim. Estamos passando
por um momento de conflitos em várias
áreas. É por conta desse choque
de paradigmas?
Marta - Acho que tem diferentes
tipos de conflitos a colocar. Acho que a mudança
de paradigmas que ocorreu no final dos anos
1980 com a Constituição, mas
também em termos de visão da
sociedade brasileira, é que os povos
indígenas são dessa parte do
território da América do Sul,
não são uma categoria transitória.
Os povos indígenas estão aqui,
fazem parte da sociedade brasileira, patrimônio
cultural do Brasil que é um país
multiétnico. Nos anos 1970, era muito
comum a maior parte das pessoas - inclusive
professores da USP [Universidade de São
Paulo], onde eu cursei ciências sociais
- dizer que os povos indígenas estavam
fadados ao desaparecimento. Até os
anos 1970, demarcar uma terra indígena
era demarcar uma aldeia. E demarcar uma aldeia
ou pedaço de terra para uma determinada
população significava uma reserva
com índios que falam a mesma língua
e que moram perto podem ser colocados ali
dentro. A ideia era demarcar aldeia e não
o espaço para reprodução
física ou cultural, que é absolutamente
fundamental para a sobrevivência dessa
população. É muito importante
a existência de matas, água,
animais, montanhas, de um território
culturalmente mais fácil de viver...
Não é preciso que se tenha um
carro, geladeira ou computador do ano para
ser feliz.
ABr - Isso não quer
dizer que o índio não possa
ter internet wireless...
Marta - Eles têm todo
direito de dialogar, de ter computadores,
caminhonetes como todo cidadão brasileiro.
Mas eles também têm direito de
viver de outro jeito, não querendo
dizer que são atrasados ou que não
seja desenvolvido. A gente escuta muito "aqueles
lá da Amazônia ainda estão
na Idade da Pedra". Muito pelo contrário,
eles estão muito mais avançados
que a gente com outra maneira de viver. Essa
discussão que seria muito importante
para nós não índios e
aprender também o que a nossa sociedade,
cultura precisa de fato. Esse paradigma ainda
não mudou.
ABr - Essa certa intolerância
contra os indígenas e esses conflitos
que vimos em pleno século 21 põem
por terra que o brasileiro tem como traço
cultural a cordialidade?
Marta - Eu tenho certeza
de que os estrangeiros já perceberam
que os brasileiros não são tão
cordiais assim, e essas questões de
violência no Brasil também estão
colocadas com os não indígenas.
A gente tem questões de violência
nas grandes cidades, uma mortalidade de jovens
homens por causas externas muito grande nas
cidades. Agora, no ponto de vista de melhorar
as relações dos não indígenas
com indígenas aqui no Brasil é
absolutamente fundamental para a gente implementar
aquela lei que manda que as escolas não
indígenas estudem a história
dos povos indígenas, que até
hoje a gente vê escolas que ficam ensinando
para jovens e crianças que os indígenas
estão numa oca, que eram preguiçosos.
Isso para mim é uma das coisas mais
importantes que a gente tem que fazer nesse
governo, priorizar a formação
das crianças e jovens. Diminuir o preconceito
é uma coisa fundamental.
Por Gilberto Costa
Edição: Rivadavia Severo
Fonte: Agência Brasil