31 de outubro de 2012 -
O Tribunal Federal da 3ª Região
(TRF-3), em São Paulo, decidiu, ontem
(30), favoravelmente pela permanência
dos Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue no
local em que se encontram atualmente. A comunidade
está vivendo em território que
considera de ocupação tradicional,
próximo ao rio Hovy, na Fazenda Cambará,
município de Iguatemi (MS).
A Justiça considerou
que a melhor solução é
a permanência dos indígenas em
um hectare, ou seja, 10.000 m², até
que seja finalizado o procedimento administrativo
de delimitação e demarcação
da área em questão. De acordo
com a decisão, a Funai e outros órgãos
do governo federal ficam autorizados a entrar
na área sub judice, a fim de prestar
toda e qualquer assistência necessária
à comunidade indígena de Pyelito
Kue.
A decisão foi proferida
em resposta ao recurso interposto pela Funai,
em 10/10/2012, que solicitou a suspensão
da liminar de manutenção de
posse concedida ao proprietário da
Fazenda Cambará.
A Funai reafirma que seguirá
prestando atendimento e assistência
jurídica à comunidade de Pyelito
Kue.
+ Mais
História e cultura
Guarani
Quando da chegada dos espanhóis
e portugueses na América, por volta
de 1500, os Guarani já formavam um
conjunto de povos com a mesma origem, falavam
um mesmo idioma, haviam desenvolvido um modo
de ser que mantinha viva a memória
de antigas tradições e se projetavam
para o futuro, praticando uma agricultura
muito produtiva, a qual gerava amplos excedentes
que motivavam grandes festas e a distribuição
dos produtos, conforme determinava a economia
de reciprocidade. Quando os europeus chegaram
ao lugar que hoje é Assunção,
no Paraguai, ficaram maravilhados com a "divina
abundância" que encontraram.
Os Guarani vêm seu
mundo como uma região de matas, campos
e rios, como um território onde vivem
segundo seu modo de ser e sua cultura milenar.
Do território tradicional, historicamente
ocupado pelos Guarani, que se estende por
parte da Argentina, Paraguai, Bolívia
e Brasil, os Guarani ocupam hoje apenas pequenas
ilhas. Seu território, o solo que se
pisa, é um tekoha, o lugar físico,
o espaço geográfico onde os
Guarani são o que são, onde
se movem e onde existem. Esses povos guardam
tradições de tempos muito antigos,
que trazem na memória que vão
atualizando em seu cotidiano, através
de seus mitos e rituais.
Os povos Guarani são
muito semelhantes nos aspectos fundamentais
de sua cultura e organizações
sociopolíticas, porém, diferentes
no modo de falar a língua guarani,
de praticar sua religião e aplicar
as diversas tecnologias na relação
com o meio ambiente. Tais diferenças,
que podem ser consideradas pequenas do ponto
de vista do observador, cumprem o papel de
marcadores étnicos, distinguindo comunidades
políticas exclusivas. Esses grupos
reconhecem a origem e proximidade histórica,
lingüística e cultural e, ao mesmo
tempo, diferenciam-se entre si como forma
de manter suas organizações
sociopolíticas e econômicas.
Atualmente, os Guarani seguem
vivendo onde sempre viveram, apesar de inumeráveis
pressões, ameaças e mortes.
Diversos grupos Guarani foram se estendendo
por esta parte da América, mediante
sucessivas migrações aliadas
ao crescimento demográfico, que começaram
há uns dois mil anos atrás e
que continuam até a atualidade. No
território brasileiro vivem os Mbya,
Kaiowá e Guarani (ou Nhandeva). Os
Guarani e Kaiowá estão em Mato
Grosso do Sul.
Um dos maiores males que
os Guarani têm que suportar é
a invasão e destruição
de sua terra, a ameaça contra seu modo
de ser, a expulsão, a discriminação
e o desprezo que vieram com a chegada dos
"outros", dos colonos e dos fazendeiros
e, mais recentemente, dos produtores de soja
e de açúcar.
O cerco aos Guarani e Kaiowá
em Mato Grosso do Sul: erva-mate, gado, soja
e cana-de-açúcar
No Brasil, a situação
dos Guarani e Kaiowá sofreu profundas
alterações logo após
a Guerra do Paraguai (entre 1864-1870). Após
este período inicia-se a ocupação
sistemática do território guarani
por diversas frentes de exploração
econômica, no sul do então estado
de Mato Grosso. Podemos afirmar que a partir
dessa data a história dos Guarani e
Kaiowá, nessa região, vem fortemente
marcada pelos rumos dessa exploração
econômica: inicialmente, da erva-mate,
a seguir a implantação dos projetos
agropecuários e de colonização,
a soja e correspondente mecanização,
na década de 1970, e, finalmente, a
cana-de-açúcar , a partir da
década de 1980.
Estar em meio a um campo
sem árvores ou junto a extensas monoculturas
de soja ou cana de açúcar é
um grande mal. A mata, a água e outros
elementos do ambiente são espaços
ocupados por uma série de seres espirituais,
com os quais os Guarani e Kaiowá necessitam
interagir para reproduzir seu modo de vida.
Esses povos não são nômades
nem vivem somente da caça, da coleta
e da pesca. São agricultores, e bons
agricultores, que produziam abundância
de comida.
Ao mesmo tempo em que viram
suas terras de ocupação tradicional
sendo transformadas e as matas derrubadas,
os Guarani e Kaiowá têm sido
incorporados sistematicamente como reserva
de mão-de-obra fundamental nas diversas
etapas dessa exploração regional.
Erva-mate, a primeira riqueza
extraída do território indígena
- década de 1880 a 1940
Ao perceber a grande quantidade
de ervais nativos na região, Thomas
Laranjeira solicitou do Governo Federal, em
1882, o arrendamento das terras no sul do
então Estado de Mato Grosso para explorá-las
e, fundou, em 1892, a Companhia Mate Laranjeira.
Com a República, as terras devolutas
– aquelas que originalmente pertenciam à
União – passaram para a responsabilidade
dos estados, o que favoreceu os interesses
da Cia. Mate Laranjeira. Dessa forma, o Decreto
nº 520, de 23/06/1890, ampliou os limites
da posse da Cia. Mate Laranjeira e deu-lhe
o monopólio na exploração
da erva-mate em toda a região, que
compreendia o território de ocupação
tradicional dos Guarani e Kaiowá. Essa
atividade foi responsável pelo deslocamento
de inúmeras famílias e núcleos
populacionais, tendo em vista a colheita da
erva mate, e pela disseminação
de várias doenças com grave
impacto sobre a saúde dos índios.
O confronto com colonos
e projetos agropecuários
Em 1943, o então
Presidente da República, Getúlio
Vargas, criou em pleno território indígena
a Colônia Agrícola Nacional de
Dourados (CAND) que tinha como objetivo possibilitar
o acesso à terra a milhares de famílias
de colonos, migrantes de outras regiões
do país. A criação dessa
e de outras colônias agrícolas
nacionais situou-se dentro da política
da "Marcha para o Oeste", buscando
incorporar novas terras e aumentar a produção
de alimentos e produtos primários necessários
à industrialização a
preços baixos. No caso havia, também,
claro interesse em povoar a fronteira, onde
a Cia. Mate Laranjeira mantinha forte presença.
A CAND, criada pelo Decreto-lei
no. 5.941, de 28 de outubro de l943, abarcava
uma área não inferior a 300
mil hectares, a ser retirada das terras da
União no então Território
Federal de Ponta Porã. A instalação
dos colonos em terras ocupadas pelos Guarani
e Kaiowa provocou problemas diversos e graves,
pois questionou a presença indígena
e impôs a sua transferência para
outros espaços. A implantação
da CAND alavanca, também, a ocupação
agropecuária e a expansão da
presença não indígena
e da infraestrutura de serviços na
região.
A partir da década
de 1950 acentua-se a instalação
de empreendimentos agropecuários nos
demais espaços ocupados pelos Kaiowá
e Guarani, ampliando o processo de desmatamento
desse território. Número significativo
de comunidades indígenas é obrigado
a abandonar suas aldeias e deslocar-se para
dentro de oito reservas de terra demarcadas
pelo SPI (Serviço de Proteção
ao Índio, que deu origem à Funai),
acentuando-se o confinamento das aldeias.
Entre os anos de 1915 e
1928, o SPI demarcou oito pequenas extensões
de terra para usufruto dos Guarani e Kaiowá,
perfazendo um total de 18.124 hectares, com
o objetivo de liberar o amplo território
ocupado pelos Guarani e Kaiowá no atual
estado de Mato Grosso do Sul. As reservas
impuseram o controle político da população,
submetida a uma série de práticas
que tinham como objetivo principal a assimilação
dos indígenas à sociedade nacional.
Foi uma estratégia governamental para
submeter esses povos aos projetos de ocupação
e exploração dos recursos naturais
por frentes não indígenas.
A introdução
da soja, a partir da década de 1970,
junto com a ampla mecanização
das atividades agrícolas, provocou
o fim das aldeias-refúgio nos fundos
de fazendas, nas quais os Kaiowá e
Guarani resistiam. A produção
comercial em monocultura comprometeu a biodiversidade,
substituindo os restos de mata, capoeiras
e campos. Com a criação do Pró-álcool,
no início da década seguinte,
são instaladas as primeiras usinas
de produção de açúcar
e álcool em Mato Grosso do Sul. Passam
a ser frequentes as denúncias de trabalho
escravo e de superexploração
dos trabalhadores indígenas e não
indígenas engajados nessa atividade.
A partir da década
de 1980, os Guarani e Kaiowá, com forte
apoio de setores da sociedade civil, recuperam
a posse de 11 terras indígenas, áreas
de antigas aldeias, que juntas somam um total
de 22.450 hectares, já devidamente
demarcadas e em sua posse. Inúmeras
outras comunidades que também perderam
suas terras durante o processo de colonização
dessa região estão exigindo
do governo o mesmo procedimento, apoiadas
no texto da Constituição Federal
de 1988.
Cabe destacar, no entanto,
que a maior parte da população
Guarani e Kaiowá, cerca de 80%, segue
vivendo nas oito reservas demarcadas pelo
SPI, nas quais há forte concentração
dos serviços de saúde, educação
e assistência oferecidos pelo governo.
O caso mais grave diz respeito às terras
indígenas de Dourados, Amambai e Caarapó
– que juntas somam 9.498 hectares de terra
e abrigam mais da metade do total de 45 mil
Guarani e Kaiowá residentes em Mato
Grosso do Sul – esse dado nos permite compreender
a extensão do confinamento imposto
aos Guarani e Kaiowá.
É necessário
também considerar que a manutenção
de milhares de famílias indígenas
se tornou cada vez mais dependente do trabalho
assalariado nas usinas, o que coloca o desafio
de encontrar outras formas de sustentabilidade
econômica para os Guarani e Kaiowa em
Mato Grosso do Sul.
As consequências atuais
da expansão econômica
O processo de perda territorial
e consequente confinamento em espaços
extremamente exíguos de um contingente
populacional muito superior ao padrão
historicamente conhecido pelos Kaiowá
e Guarani impôs profundas limitações
à sua economia de reciprocidade, relacionada
a aspectos fundamentais de sua política
e cultura. A inviabilização
da itinerância e o rápido esgotamento
dos recursos naturais reduziram muito a qualidade
de vida nos seus tekoha (terras tradicionais).
O confinamento trouxe o
desafio de adequar a organização
social dos Guarani e Kaiowá à
nova situação marcada pela superpopulação
numa mesma região, pela sobreposição
de parentelas e transformações
de ordem econômica. O confinamento na
reserva resultou assim num processo que limita
drasticamente as possibilidades de reprodução
do ava reko, o sistema social guarani. Este
processo está na raiz dos principais
problemas sociais e impasses vividos pelos
Kaiowá e Guarani hoje.
Abordar a questão
das terras Guarani e Kaiowá no Brasil
é trazer a público a situação
desse povo: há menos de um hectare
por pessoa, chegando a situações
absurdas como na Terra Indígena Dourados,
com mais de 12 mil pessoas em 3.500 hectares.
Lá vivem mais de 40 grupos familiares
distintos. Expulsos de outras aldeias, foram
obrigados a deslocar-se para essa área
que, proporcionalmente, apresenta altos índices
de violência.
Em 1978, um grupo de Kaiowá
e Guarani que viviam em Rancho Jacaré,
área da Companhia Mate Laranjeira,
em Laguna Caraapã, foi levado à
força para a terra indígena
Kadiwéu, no município de Porto
Murtinho. Depois de um tempo no desterro,
iniciaram uma longa e penosa volta à
sua própria terra donde haviam sido
expulsos. Não demorou e outras aldeias
iniciaram a retomada de suas terras de ocupação
tradicional. Daí em diante, a articulação
e mobilização dos Kaiowá
Guarani, com o apoio de aliados da sociedade
civil, possibilitou o retorno a mais de uma
dezena de territórios tradicionais.
Hoje permanecem em aproximadamente 20 aldeias
tradicionais retomadas a partir da década
de oitenta. Porém, de várias
delas foram retirados à força,
com inúmeros mortos e feridos. Em consequência
desse processo de dispersão, constata-se
a presença de membros de uma parentela
dispersos em várias terras indígenas
da região. Aguardam a oportunidade
de retornar à terra onde nasceram,
onde estão enterrados seus antepassados
e onde está a base de sua cultura,
visão de mundo e perspectiva de futuro.
A situação
das terras e a pressão exercida pelos
Kaiowá e Guarani fizeram com que nos
últimos anos a Funai colocasse essa
questão como prioridade em seu planejamento.
Nesse sentido, em 2008, a Funai instituiu
seis Grupos de Trabalho (GTs) para a identificação
e delimitação de terras Guarani
e Kaiowá no Cone Sul do estado de Mato
Grosso do Sul.
Fonte: Guarani Retã
– Povos Guarani na Fronteira Argentina, Brasil
e Paraguai – 2008
Autores: Marta Azevedo, Antonio Brand, Egon
Heck, Levi Marques Pereira, Bartomeu Melià.
Realização: UNaM, ENDEPA; CTI,
CIMI, ISA, UFGD; CEPAG, CONAPI, SAI, GAT,
SPSAJ, CAPI.