Recém-inaugurado,
o Sistema de Vigilância da Amazônia
(Sivam) reedita avalanche de denúncias sobre
favorecimento na concorrência para fornecedores
de equipamentos, e sobre informações
estratégicas que poderiam ser acessadas pelo
governo dos Estados Unidos. Enquanto isso, vários
órgãos governamentais afins dizem
que não estão preparados para usar
os dados que serão disponibilizados e as
intenções do governo FHC de colocar
o sistema ao alcance e serventia da sociedade civil
ainda não saíram do papel.
Sob uma saraivada de denúncias,
o presidente Fernando Henrique Cardoso inaugurou,
em 25/07, a primeira das três bases fundamentais
do Sivam - o Controle Regional de Vigilância
(CRV) de Manaus. Os outros dois CRVs a entrarem
em funcionamento serão o de Porto Velho (RO)
e o de Belém (PA). As denúncias envolvem
basicamente um suposto acordo obscuro com os Estados
Unidos - a começar pela empresa que ganhou
a concorrência, a Raytheon. Além disso,
até este momento, a participação
da sociedade civil prevista no Decreto 4.200, de
17/04/2002, não evoluiu.
O Decreto estabelece no inciso décimo de
seu Art. 2º. que o Centro Gestor e Operacional
do Sistema de Proteção da Amazônia
(Censipam) tem a finalidade de "articular-se
com órgãos da Administração
Pública Federal, Estadual, Distrital e Municipal
e entidades não-governamentais responsáveis
pela execução das ações
e das estratégias para a implementação
das deliberações do Consipam (Conselho
Deliberativo do Sistema de Proteção
da Amazônia), formado por representantes de
diversas áreas do governo federal, podendo
firmar acordos, convênios e outros instrumentos
necessários ao cumprimento dessas atribuições".
Por esse mesmo decreto, o Sivam passou do âmbito
do Ministério da Defesa para a Casa Civil,
no sentido de reforçar que seu caráter
é multidisciplinar e não só
militar.
Composto por uma rede de 25 radares, inúmeras
antenas transmissoras e sensores, centros de operação
e equipamentos de informática, aviões
de rastreamento e sensoriamento aéreo remoto
(SAR), o Sivam é a estrutura física
do Sistema de Proteção da Amazônia
(Sipam) - rede de monitoramento e informações
que promete contribuir para a conservação
do meio ambiente, a proteção das Terras
Indígenas, a elaboração de
políticas públicas e a segurança
da Amazônia brasileira. Esse sofisticado sistema,
ainda não totalmente implementado e orçado
em US$ 1,4 bilhão, deverá monitorar
os 5,2 milhões km² da Amazônia
Legal no Brasil.
Para a sociedade civil, dados
meteorológicos
O Sipam produzirá informações
sobre atividades antrópicas de todo o tipo
- como movimento de pessoas nas fronteiras, ações
do narcotráfico, desmatamentos e queimadas,
ocupações humanas etc. - e aspectos
naturais, como mudanças climáticas,
dados mineralógicos, volume dos rios, entre
outros. Os dados coletados serão analisados
e irão fomentar atividades práticas
sobre segurança, meio ambiente, questões
fundiárias, proteção de populações
tradicionais e pesquisas em geral, por meio de parcerias
entre o Sipam, órgãos governamentais,
secretarias estaduais do Acre, Amapá, Amazonas,
Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia,
Roraima e Tocantins e prefeituras municipais dessas
regiões.
"Para estabelecer parcerias com organizações
não-governamentais, a instituição
interessada deve oferecer ou gerar informações
que complementem o banco de dados do Sipam, e também
provar que a utilização das informações
do sistema irá beneficiar o país",
explica o Coronel Ronaldo Braga, gerente de integração
do Consipam.
A sociedade em geral terá acesso apenas a
dados meteorológicos, que serão disponibilizados
via internet em data ainda a ser definida. Outras
informações poderão ser acessadas
pelo público, por meio das instituições
parceiras do Sipam, dependendo do conteúdo
pretendido - que não poderá ser de
caráter estratégico para o país
- e da finalidade de uso.
Meio ambiente
O principal parceiro do Sipam
é o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)
para o desenvolvimento de ações na
área ambiental. "A expectativa é
que as informações do monitoramento
da Amazônia e a operação conjunta
entre Ibama e órgãos como a Agência
Nacional de Águas (ANA), a Fundação
Nacional do Índio (Funai), o Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária
(Incra), a Polícia Federal e a Polícia
Florestal garantam mais eficiência na proteção
e fiscalização do meio ambiente, bem
como racionalizem os recursos humanos e financeiros
do Ibama", explica Sueli Guimarães,
designada pelo instituto para acompanhar as atividades
junto ao Sipam.
O órgão ambiental recebeu 37 mapas
e 25 relatórios produzidos pelo Sipam para
que possa montar planos de ação. Até
o momento, o Ibama não incluiu organizações
da sociedade civil no processo, mas Sueli Guimarães
afirma que a intenção é unir
esforços com ONGs e universidades.
O primeiro teste da parceria Ibama/Sipam está
previsto para ser realizado ainda em agosto, quando
um dos três aviões SAR sobrevoará
o chamado Arco do Desflorestamento - área
que compreende o sul do Pará, nordeste do
Mato Grosso e noroeste de Tocantins - e a Floresta
Nacional Bom Futuro (PA). A aeronave, equipada com
um satélite, produz imagens com resolução
de três metros quadrados e permite um detalhamento
jamais obtido da situação do desmatamento
e da ação humana na área.
Parceiros limitados
Para monitorar as terras dos povos
indígenas da Amazônia brasileira, o
Sipam estabeleceu uma parceria com a Fundação
Nacional do Índio (Funai). Por meio de suas
Administrações Regionais (ADRs) e
postos indígenas, a Funai terá acesso
às informações do Sipam em
tempo real.
Contudo, maior controle visual sobre as Terras Indígenas
(TIs) não significa uma intensificação
das ações de fiscalização
e de repressão a invasões. "O
funcionamento eficiente do sistema depende da reestruturação
da Funai, reformulando sua forma de organização
e atuação, bem como da realização
de concursos públicos para aumentar seus
quadros", analisa André Ramos, coordenador
da Funai junto ao Sipam. Ele lembra que essas demandas
existem há anos. "Mesmo a identificação
de novas terras, que poderia ser beneficiada pelo
monitoramento da perambulação dos
grupos indígenas, fica limitada pelos trâmites
administrativos e jurídicos necessários
à sua realização."
O início das atividades práticas envolvendo
a parceria Funai/Sipam deve ocorrer apenas depois
da inauguração do CRV Porto Velho
e do CRV Belém. Enquanto isso, equipamentos
de recepção e placas solares estão
sendo instaladas em pequenas bases montadas nos
postos da Funai, e as ADRs estão incumbidas
de informar funcionários e comunidades indígenas
sobre as ações do Sipam.
Já a Fundação Palmares, órgão
do Ministério da Cultura responsável
pela identificação e titulação
das terras quilombolas, não iniciou conversas
com o Sipam, por não dispor de pessoal para
uma parceria. Finalmente, o Incra, que possui representantes
em duas comissões do Sipam, ainda não
tem um plano de ação de como utilizar
as informações para deter a grilagem
de terras e para planejar assentamentos.
Soberania Nacional
A expansão do Sivam já
está sendo negociada com países vizinhos
ao Brasil, que também pretendem monitorar
os domínios da Amazônia em seus territórios
e assim promover ações integradas
na região. Mas essa iniciativa, assim como
o objetivo de promover um mapeamento detalhado da
Amazônia brasileira e desenvolver, a partir
daí, políticas públicas para
a região são colocados em dúvida
pelas denúncias que estão causando
polêmica em relação ao Sipam.
Uma delas diz respeito à possibilidade de
acesso às informações estratégicas
do sistema pelos Estados Unidos, por meio da Raytheon,
empresa parceira do governo norte-americano em projetos
militares que ganhou a concorrência para fornecer
os equipamentos de alta tecnologia.
O coronel aviador da reserva Paulo Esteves, assessor
de comunicação para a implementação
do Sivam, afirma que isso não procede. "A
Raytheon apenas forneceu equipamentos, enquanto
os softwares são de origem alemã e
têm tecnologia aberta, ou seja, o sistema
de codificação das informações
é desenvolvido no Brasil." Esteves explica
ainda que equipes especializadas trabalham para
garantir a inviolabilidade do sistema e pesquisam
a tecnologia utilizada nos equipamentos da Raytheon
para que o Brasil não dependa da assistência
da empresa para sua manutenção e aprimoramento.
A polêmica, no entanto, continua. O deputado
Fernando Gabeira (PT), por exemplo, em artigo publicado
no jornal Folha de S. Paulo, edição
de 29/07, levantou a possibilidade de que o Sipam
funcione como uma extensão do Plano Colômbia,
o projeto militar financiado pelos Estados Unidos
para a erradicação das plantações
de coca, das operações do narcotráfico
e da guerrilha na Amazônia colombiana. A hipótese
de Gabeira baseia-se em denúncias de favorecimento
da Raytheon em detrimento de outras empresas na
concorrência para o Sivam e porque o governo
norte-americano teria considerado a vitória
não só um ganho financeiro, como também
político-estratégico para seus interesses
na Amazônia.
A Campanha Nacional contra a Área de Livre
Comércio das Américas (Alca), movimento
formado por mais de 100 entidades, entre elas a
Confederação Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), o Movimento dos Sem Terra (MST) e
o Partido dos Trabalhadores (PT), também
acredita que o Sipam pode ser parte de uma estratégia
dos Estados Unidos para expandir sua presença
militar na Amazônia. Com a justificativa de
vigiar e reprimir o narcotráfico, os governos
norte-americanos estabeleceram na região,
nos últimos três anos, mais de 20 instalações
militares, entre bases aéreas e de radar.
O próprio acordo de salvaguardas que permite
a utilização pelos Estados Unidos
da Base de Alcântara no Maranhão, sem
qualquer interferência ou fiscalização
brasileira é apontado por alguns como mais
uma etapa desse processo.
Os responsáveis pelo Sipam e o presidente
Fernando Henrique Cardoso negaram reiteradas vezes
a hipótese de que o sistema e a Base de Alcântara
fazem parte de uma estratégia político-militar
norte-americana. Mas a polêmica está
longe de ter chegado ao fim.