31/03/2006 - A frase
de Fernanda Kaingang resume o estado de espírito
dos indígenas que participaram dos
debates sobre tecnociência e conhecimentos
tradicionais, no segundo dia da COPTRIX, em
Curitiba (PR), revelando o jogo de cena e
a exclusão a que estão sujeitos
na dinâmica da COP8.
Em clima de desabafo e de
indignação, mas também
com uma convocação à
mobilização em defesa dos direitos
das populações tradicionais,
terminou na quarta-feira, dia 28 de março,
a COPTRIX, a série de debates promovida
pelo Instituto Socioambiental (ISA) durante
8ª Conferência das Partes (COP
8) sobre a Convenção da Diversidade
Biológica (CDB), que vai até
amanhã, dia 31, em Curitiba (PR).
“Os povos indígenas
estão morrendo e passando fome por
detrás do espelho da COPTRIX, onde
está o mundo paralelo das delegações,
da CDB, da repartição de benefícios
justa e eqüitativa. É preciso
quebrar o espelho”, desabafou, emocionada,
a advogada indígena Fernanda Kaingáng,
diretora-executiva do Instituto Indígena
Brasileiro para a Propriedade Intelectual
(Inbrapi). A alusão ao espelho, segundo
Fernanda, se refere ao verdadeiro autismo
das dinâmicas da COP-8, onde o que importa
não é a sociobiodiversidade
do planeta, mas os egos das pessoas que julgam
falar em nome de seus países. Mais
uma vez, a COP deixa como herança toneladas
de papel e lixo, a promessa de prometer mais
intrincadas negociações e a
impressão de que a CDB vai continuar
sem ter efeitos práticos significativos.
Nos dois dias da COPTRIX, mais de 240 pessoas,
entre pesquisadores, ativistas, representantes
de organizações da sociedade
civil, de comunidades indígenas e locais
do Brasil, Alemanha, Malásia, Costa
Rica, Estados Unidos e Colômbia, entre
outros, passaram pela tenda do Fórum
Global da Sociedade Civil na COP-8, onde ocorreu
o evento. A idéia foi trazer um panorama
diversificado do pensamento e das iniciativas
de contestação à tendência
de privatização da biodiversidade
no planeta.
“Na língua Kaingang
não damos bom dia. Peguntamos: você
está bem? Será que nós,
povos indígenas, estamos bem? O que
a COPTRIX não sabe é que nós,
povos indígenas, não estamos
bem aqui”, questionou Fernanda Kaingang. Ela
foi uma das palestrantes da mesa da manhã,
que tratou do tema “tecnociência e saberes
tradicionais sobre a biodiversidade”. A advogada
criticou ferozmente o mundo paralelo das negociações
oficiais, cujas delegações vivem
diante de espelhos e ignoram a miséria
e a pobreza em que vivem os povos indígenas
no mundo, e mostrou-se cética quanto
à possibilidade de avanços nas
discussões da CDB.
“Antes de mais nada, temos
de reconhecer a titularidade dos povos indígenas
sobre os seus territórios e sobre os
seus conhecimentos tradicionais. Isso deve
ser implementado como um conjunto de políticas
públicas. Estamos abertos ao diálogo,
mas não à exploração”,
disse. Fernanda Kaingang afirmou também
que muitos pesquisadores responsáveis
por bancos de dados sobre recursos genéticos
e conhecimentos tradicionais praticam a biopirataria
usando a desculpa de que ainda não
existem critérios e normas sobre o
assunto. “A CDB diz que outros tratados internacionais
também devem ser respeitados. Todo
mundo fala de respeitar a OMC, a OMPI, mas
e a Convenção 169 da OIT? Já
existe uma convenção internacional
que respeita os direitos indígenas,
mas ela nunca é lembrada na COPTRIX”.
“A maior ameaça da
CDB aos povos indígenas é a
noção de que os Estados nacionais
têm uma soberania absoluta sobre os
recursos e conhecimentos localizados em seus
territórios. Os povos indígenas
são considerados em segundo plano nesta
questão”, apontou Debra Harry, do Conselho
dos Povos Indígenas sobre o Biocolonialismo
(IPCB, na sigla em inglês). Ela argumentou
que a proteção dos recursos
biológicos e dos conhecimentos das
populações tradicionais passa
pelo reconhecimento e garantia do direito
à autodeterminação e
territórios desses povos. “Existe uma
grande resistência dos países
membros da CDB a mencionar esses direitos
e a palavra ‘povos’ no regime internacional
de acesso aos recursos genéticos e
repartição de benefícios
que está sendo negociado na COP. Falar
em ‘povos’ implica o reconhecimento de direitos
coletivos, o que vai contra vários
interesses”.
A diretora da Cooperativa
Ecológica das Mulheres Extrativistas
da Ilha do Marajó (Cemem), Edna Marajoara,
exigiu maior participação das
comunidades tradicionais nos debates da CDB.
“Hoje, quando falam em repartição
de benefícios na Convenção,
estão falando sobre como dividir a
menor parcela possível desses benefícios
com as populações tradicionais.
Queremos ser respeitados e consultados. O
regime internacional tem a ver com nossa subsistência
e com a sustentabilidade de nossos territórios.”
Crise de legitimidade
“Tenho esperanças
de que as negociações sejam
retomadas, mas está claro que a COP
8 é um fracasso no tocante a avanços
para conservação do meio ambiente
e a garantia dos direitos humanos”, admitiu
Martin Kaiser, do Greenpeace International,
durante a última mesa da COPTRIX. A
mesa, intitulada “Novas práticas para
velhas utopias: há rumo para a CDB?”,
pretendeu discutir como alcançar os
objetivos da CDB através de outros
caminhos que não as negociações
internacionais.
Kaiser criticou a posição do
governo brasileiro na COP-8, nesta semana,
contrária a restrições
ao comércio internacional de madeira
obtida ilegalmente, constante do programa
de trabalho sobre biodiversidade florestal
da CDB, sob a justificativa de que elas poderiam
significar barreiras não tarifárias
às exportações do País.
No mesmo debate, o jurista
Carlos Frederico Marés abordou a crise
de legitimidade do Estado Nacional em sua
relação com os povos tradicionais
e com o sistema capitalista internacional.
Marés considera que a sociedade civil
organizada e muitos povos indígenas
não se sentem representados pelos Estados
Nacionais na América Latina, e critica
a ambigüidade do poder do Estado, ora
forte, ora fraco. “O Estado é monolítico
e tem uma dificuldade tremenda em intervir
no sistema de propriedade da terra quando
se trata de reconhecer os territórios
tradicionais, por exemplo. Por outro lado,
torna-se bastante flexível e suscetível
quando deve responder às pressões
pela liberalização do comércio
internacional”.
Segundo o jurista, os Estados
latino-americanos têm tratado os conhecimentos
tradicionais associados à biodiversidade
de duas maneiras: “Eles desprezam esses conhecimentos,
quando não há nenhuma expectativa
de lucro ou outra vantagem, o que abre o caminho
para o extermínio das populações
e de seus saberes; ou facilitam a rapinagem
das empresas sobre esses conhecimentos.”
Para Marés, as populações
tradicionais são as responsáveis
por “ensinar” ao Estado o reconhecimento de
dois direitos coletivos fundamentais: o direito
ao patrimônio cultural e ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado. Para ele, neste
processo, os povos indígenas deram
um novo sentido à luta por direitos
de toda a sociedade. “A velha utopia é
a do sujeito coletivo de direito, mas que
agora reivindica uma nova soberania, não
mais a do Estado, mas aquela de quem se organiza
em comunidade e em coletividade. Podemos emprestá-la
ao Estado, mas desde que ele pretenda defender
a soberania popular.”