09/04/2008
- Estradas e pontes destruídas, trincheiras,
fabricação de bombas caseiras, ameaças
de confronto armado. É nesse cenário
que a Polícia Federal se prepara, desde o
final de março, para fazer a desintrusão
da Raposa-Serra do Sol, em Roraima, enquanto os
seis arrozeiros que a ocupam ilegalmente se recusam
a sair, apoiados por alguns índios. Quanto
mais a polícia demora, mais se fortalece
a resistência e a violência dos ocupantes.
Por que é tão difícil cumprir
a lei em Roraima?
Homologada desde 2005, só
agora, três anos depois, a Polícia
Federal está em Roraima para promover a desintrusão
da Terra Indígena (TI) Raposa-Serra do Sol,
ocupada ilegalmente por arrozeiros e não-índios.
Ao perceber que desta vez a desocupação
é para valer, os arrozeiros que lá
estão, liderados por Paulo Cesar Quartiero,
com o apoio de alguns índios, decidiram ir
para o confronto e passaram a destruir pontes e
estradas para impedir o acesso à terra, a
fabricar e lançar bombas caseiras, a montar
barricadas e trincheiras, e a se utilizar de táticas
de guerrilha para resistir, num claro ato contra
o Estado de Direito.
Com 1,747 milhão de hectares,
a TI é habitada por 16 mil índios
das etnias Macuxi, Tauarepang, Patamona, Ingarikó
e Wapixana, espalhados por 164 aldeias. Embora o
processo de reconhecimento formal da Terra Indígena
Raposa-Serra do Sol tenha se iniciado nos anos 1980,
a terra foi homologada pelo Presidente da República
em abril de 2005.
O decreto dava prazo de um ano
para que os ocupantes não-índios,
se retirassem. Passaram-se três anos e pouco
aconteceu. Apenas 139 famílias, das 292 cadastradas
no Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (Incra) foram reassentadas
até o momento.
Os arrozeiros instalados na TI
adquiriram as terras no início dos anos 11000,
pagando apenas o valor das benfeitorias - porque
compraram de ocupantes anteriores que queriam sair
dali. Começaram a produzir em 1994, quando
a área já tinha sido identificada
e publicada no Diário Oficial da União
pela Fundação Nacional do Índio
(Funai), com isenção fiscal concedida
pelo Estado de Roraima. Além disso, os produtores
desrespeitaram a legislação ambiental,
desviando o curso de igarapés, destruindo
matas ciliares e poluindo as fontes de água.
Mesmo assim, o grupo expandiu a área de ocupação
nos últimos anos e tem lucros que os estimulam
a desafiar o governo federal e o Estado de Direito.
Paulo Cesar Quartiero,por exemplo, comprou a Fazenda
Providência em 2001, três anos depois
da demarcação da TI.
Apesar de criado em 1988 pela
Constituição Federal, o Estado de
Roraima ainda depende da remessa de recursos federais
para a sua manutenção. Sem um projeto
de desenvolvimento definido e instituições
republicanas consolidadas, o estado propicia o enriquecimento
ilegal, sem custos sociais e ambientais.
Desafio à lei
Nesta semana, a imprensa de Boa
Vista, capital do estado, dava conta de que os rizicultores
teriam chamado grupos de “sem-teto” para participar
dos protestos, com a promessa de garantir um lote
na Raposa-Serra do Sol. “Esses homens estão
desafiando a lei e o próprio governo. Mas
nós vamos aguardar firme e pacificamente,
apoiando a Policia Federal na operação
de retirada”, afirma o coordenador do Conselho Indígena
de Roraima (CIR), o macuxi Dionito José de
Souza.
Ele acredita que algumas pessoas
que se aliaram aos agricultores foram iludidas:
"O pessoal armou uma cilada para alguns índios
e não-índios – muitos foram enganados
para participar do bloqueio. Houve até promessa
de distribuição de carne e de terrenos".
Os manifestantes têm anunciado um ‘derramamento
de sangue’, o que preocupa as comunidades indígenas.
O representante do CIR lamenta o desrespeito aos
povos indígenas: “Diziam que havia convivência
pacífica. Queimando as casas dos outros,
amedrontando as famílias? Da nossa parte,
a gente considera isso terrorismo. Não aceitamos
essa violência, mas não podemos fazer
nada. A gente só quer manter nossa liberdade
e a nossa terra”, explica Dionito, que solicitou,
às instituições de Roraima,
proteção aos moradores da Raposa-Serra
do Sol.
Esses atos de resistência
ao cumprimento da lei, em Roraima, só têm
precedentes antes da homologação da
TI, em 2004 e depois, durante a festa de homologação,
em setembro de 2005. Todos esses episódios
são uma afronta ao Estado de Direito.
Guerra sem exército
Os distúrbios estão
acontecendo em área de fronteira já
que a TI faz limites com a Guiana e a Venezuela,
e, apesar disso, o Exército não se
manifestou. É sabido que a instituição
tem grandes contingentes nas proximidades, treinamento
para o combate de guerrilhas e conhecimento da região,
o que agilizaria a operação de retirada.
Por outro lado, nota divulgada prlo jornal Correio
Braziliense, de 7/4, denuncia que “as escutas (da
Polícia Federal, que monitora os manifestantes
com grampos nos telefones e aparelhos de rádio)
indicam que o mentor das táticas de resistência
seria um general do Exército da reserva que
comandou a Agência Brasileira de Inteligência
(Abin) em Roraima”.
Consultada sobre isso, a assessoria
de Comunicação do Ministério
da Defesa indicou o Ministério da Justiça
que por sua vez, não se pronunciou, dizendo
não ter resposta oficial.
Em setembro de 2007, o ministro
da Defesa, Nelson Jobin, acabou afastando do cargo
de secretário de Política, Estratégia
e Assuntos Internacionais do Ministério da
Defesa, o general Maynard Santa Rosa. Dias antes,
o general havia declarado ao jornal O Globo que
não concordava com o apoio das Forças
Armadas à operação que a Polícia
Federal programou para retirar arrozeiros de Raposa
Serra do Sol. O ministro da Defesa negou que o motivo
fosse esse.
Operação Upatakon
III
Na ausência do Exército,
o Ministério da Justiça encarregou
a Polícia Federal de lidar com os invasores
rebeldes, com o apoio da Força Nacional de
Segurança (FNS). Apesar da tensão,
acrescida por ameaças e agressões
contra os povos indígenas e os policiais,
a PF garantiu que a retirada dos não-índios
da Terra Indígena Raposa Serra do Sol vai
ocorrer, inevitavelmente, com ou sem o uso da força.
O coordenador geral da Operação
Upatakon 3, delegado Fernando Segóvia, disse
não haver necessidade de utilizar tropas
das Forças Armadas. Os policiais tentam convencer
as pessoas a deixar o local pacificamente. "Mas
se eles não quiserem sair, infelizmente,
teremos que tirá-los de lá",
informa.
Sem revelar o total do efetivo
envolvido na operação nem confirmar
quando a ofensiva será deflagrada, os agentes
federais e a Força Nacional se preparam para
um confronto que parece inevitável, já
que os arrozeiros insistem em não recuar.
A polícia recebeu armamentos
(escudos, balas de borracha, capacetes e bombas
de efeito moral), que ficarão armazenados
em um depósito até o momento da ofensiva,
e deve permanecer por mais 60 dias após o
início da operação de retirada,
para garantir a segurança dos indígenas
depois da saída dos arrozeiros.
As autoridades afirmam que a Operação
não vai parar por pressão dos arrozeiros.
Para o novo Superintendente da Polícia Federal
em Roraima, delegado José Maria Fonseca,
em entrevista à Folha de Boa Vista, "a
resistência dos produtores de arroz da Terra
Indígena Raposa-Serra do Sol não pode
ser vista como movimento, mas sim como ato de insubordinação,
de desobediência civil, incitação
à prática de crimes, uso de incapazes
como escudos, cerceamento do direito constitucional
do cidadão de ir e vir e de danos causados
ao patrimônio público (pontes queimadas
e interceptação de estradas)".
Fonseca acrescentou que os produtores
estão usando crianças, mulheres, idosos
e homens iludidos sobre os fatos, na tentativa de
impedir qualquer ação dos policiais.
“É um pequeno grupo com interesses pessoais
e econômicos, que tem passado para a população
uma realidade totalmente diferente da verdade do
que é a situação da Raposa
Serra do Sol”, analisou.
O secretário-executivo
do Ministério da Justiça, Luiz Paulo
Barreto, declarou em entrevista coletiva no dia
2/4, que não retrocederá na Operação
Upatakon 3 e disse estar esgotada a possibilidade
de novas negociações com os não-índios
que permanecem na área: “Parece que essas
pessoas querem mesmo um conflito para tentar vencer
a ordem instituída. Mas não estamos
passando por cima do direito de ninguém.
Pelo contrário, esperamos três anos
depois da decisão de homologação
da reserva para conseguir uma solução
negociada. Só que chega um momento em que
ou se impõe a lei ou se sucumbe”.
Força-tarefa da Advocacia
Geral da União
A resistência nesta proporção
ao cumprimento da lei é inédita. Tanto
que, pela primeira vez, foi organizado um Grupo
de Trabalho (GT) composto por advogados da União,
procuradores federais e assistentes jurídicos
da Funai, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama),
Agência Nacional de Águas e outros
órgãos, para apoiar a desintrusão
de uma Terra Indígena.
Publicada no Diário Oficial
da União em 4 de abril de 2008, a portaria
determina que o grupo mantenha regime de plantão
para prestar orientação jurídica
aos órgãos públicos federais
nas questões urgentes identificadas na operação
de retirada. Também são atribuições
do GT: colher e organizar informações
sobre a operação; identificar e acompanhar
as ações judiciais que possam obstruir
sua realização e, ainda, estabelecer
estratégia de ajuizamento de medidas de urgência,
decorrentes da retirada de ocupantes não-índios
inseridos na Raposa- Serra do Sol.
A guerra no STF que os arrozeiros
já perderam
Os arrozeiros reclamam que o Poder
Executivo deveria esperar uma decisão final
do Poder Judiciário sobre a demarcação
da Raposa-Serra do Sol antes de serem retirados.
Mas, a advogada Ana Paula Caldeira Souto Maior,
do Programa Política e Direito Socioambiental
(PPDS) do ISA considera a argumentação
meramente protelatória, “O fato de haver
ações em andamento impetradas no STF
não significa que o Poder Público
esteja impedido de agir para fazer valer a decisão
que homologou a demarcação da Terra
Indígena há 3 anos. O Ministério
da Justiça e demais órgãos
só estariam obrigados a esperar uma decisão
judicial final, se houvesse alguma medida liminar
que permitisse aos arrozeiros lá permanecerem”.
E não é isso que está acontecendo.
Em 12/3, o ministro Carlos Ayres
Brito negou pedido de liminar a Paulo Cesar Quartiero,
o chamado líder dos arrozeiros, em ação
proposta em 2006 contra a União, a Funai
e o Conselho Indígena de Roraima (CIR), para
manter-se na Terra Indígena. Na decisão,
o ministro Ayres Britto nega o pedido e alerta para
o risco que representaria a presença do arrozeiro
na região. A decisão está em
consonância com outras duas proferidas em
fevereiro deste ano pelo STF, favoráveis
a homologação da Terra Indígena
e à retirada dos ocupantes não-índios.
Dificilmente esta derradeira tentativa
dos arrozeiros de tentar abortar a Operação
Upatakon III no STF terá sucesso. Eles já
haviam tentado em 2007, por meio de Mandado de Segurança
(MS 25483) uma liminar para suspender até
o julgamento do mérito do mandado, a retirada
da área ocupada pelos arrozeiros Itikawa
Indústria e Comércio Ltda., Ivalcir
Centenaro, Luiz Afonso Faccio, Nelson Massami Itikawa
e Paulo César Justo Quartiero. O tribunal
foi unânime ao negar a segurança demandada.
O relator considerou o processo de demarcação
uma obrigação do Poder Público,
como exposto na decisão: “Na ausência
de ordem judicial a impedir a realização
ou execução de atos, a Administração
Pública segue no seu dinâmico existir,
baseada nas determinações constitucionais
e legais. O procedimento administrativo de demarcação
das terras indígenas Raposa Serra do Sol
não é mais do que o proceder conforme
a natureza jurídica da Administração
Pública, timbrada pelo auto-impulso e pela
auto-executoriedade”.
Tramitam também no STF
algumas ações contra a Portaria nº534/05,
do ministro da Justiça, que declara a terra
como indígena e contra o decreto do Presidente,
que homologa a demarcação. Em abril
de 2006, por unanimidade, o STF confirmou a decisão
de não conceder liminar para sustar os efeitos
da Portaria 534/2005. (Agravo Regimental na Petição
3388). "Todas estas decisões do STF,
as recentes e as posteriores à homologação
em 2005, mesmo em caráter liminar, demonstram
a construção de um entendimento favorável
aos direitos originais dos índios sobre as
terras que ocupam", conclui Ana Paula.
Para que o governo retire os arrozeiros
da TI e proteja as comunidades indígenas,
o Conselho Indígena de Roraima pede que a
sociedade envie cartas de apoio à Operação
Upatakon 3.
Modelo de carta
"Ficamos contentes com anúncio
da operação de retirada dos não-índios
da terra indígena Raposa Serra do Sol, denominada
Upatakon 3. Sentimos firmeza do Governo Federal
em garantir os direitos dos povos indígenas
que já aguardam, há pelo menos 30
anos, pela conquista de suas terras, e, finalmente
poderão usufruir dos seus territórios
garantidos na Constituição Brasileira.
Estamos preocupados com as informações
que chegam da terra indígena Raposa Serra
do Sol, Roraima. A resistência organizada
por um grupo de apenas seis rizicultores tomou contornos
de uma verdadeira guerrilha. Ações
terroristas são realizadas desde o último
dia 30 de março, com o bloqueio de estradas,
bombas de fabricação caseira lançada
na casa de um tuxaua, hostilidade à imprensa,
incitação à violência,
cerceamento ao direito de ir e vir, pontes queimadas,
e cárcere privado, com o objetivo declarado
de impedir o cumprimento da Operação
Upatakon 3.
O início e a esperada conclusão
da Operação Upatakon 3, retirando
todos os invasores da TI RSS, devolverá aos
povos indígenas a paz, a justiça e
a dignidade, tiradas há mais de 500 anos.
A resistência ao cumprimento do decreto de
homologação é uma afronta ao
Estado Brasileiro que, durante três anos,
tentou de todas as maneiras possíveis um
acordo para a solução do impasse,
oportunizando, inclusive, o direito ao contraditório
a todos os envolvidos, especialmente aos arrozeiros.
Acreditamos que o Estado Brasileiro
não recuará no seu papel de fazer
valer a lei e de punir grupos ou pessoas que se
levantam contra a democracia e contra Constituição
Federal, com o objetivo exclusivo de proteger os
seus interesses econômicos e políticos”.
Quem deve receber as cartas de
apoio à operação, segundo o
CIR:
Exmo Sr. Luis Inácio Lula
da Silva
Presidente da República
E-mail: PR@planalto.gov.br e protocolo@planalto.gov.br
Exmo Sr. Tarso Genro
Ministro da Justiça
E-mail: gabinetemj@mj.gov.br
Exmo Sr. Paulo de Tarso Vannuchi
Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos
E-mail: direitoshumanos@sedh.gov.br
Exmo Sr. Celso Amorim
Ministro de Relações Exteriores (MRE)
E-mail: celsoamorim@mre.gov.br
Exmo Sr. Márcio Meira
Presidente - FUNAI
E-mail: marcio.meira@funai.gov.br
+ Mais
STF manda suspender operação
de desintrusão na Raposa-Serra do Sol
10/04/2008 - Em decisão
unânime, ministros do Supremo Tribunal Federal
acataram cautelar do governo do Estado de Roraima
pedindo a suspensão da desocupação
dos não-índios na Terra Indígena
Raposa-Serra do Sol, que já deveria ter ocorrido
há exatos dois anos. Decisão, baseada
num suposto risco de “guerra civil”, contraria julgamentos
recentes do próprio tribunal que reconheciam
o direito dos povos indígenas sobre o território.
O Supremo Tribunal Federal julgou
nesta quarta-feira (9/4) ação cautelar
do governo de Roraima e decidiu suspender a operação
de desintrusão de não-índios
que ocupam a Terra Indígena Raposa-Serra
do Sol. A ação alega que a desintrusão,
obrigatória por lei, poderia causar “grave
risco à ordem pública”, fundamentando-se
nas violentas manifestações lideradas
por seis fazendeiros que ocupam ilegalmente áreas
dentro da TI. Acatando esse argumento, o STF determinou
que a operação deve ser paralisada
até que sejam julgadas todas as ações
que questionam a demarcação da área.
Há atualmente pelo menos
quatro ações no STF questionando o
processo de demarcação da TI.Em nenhuma
delas, no entanto, havia decisão paralisando
o processo, que já deveria ter ocorrido há
dois anos, segundo o decreto de homologação
publicado em abril de 2005 e que estabelecia o prazo
de um ano para que a Fundação NAcional
do Índio (Funai), com o auxilio da Polícia
Federal se necessário, promovesse a retirada
dos ocupantes da Terra Indígena. A decisão
causa estranheza ao contrariar posicionamentos recentes
do mesmo tribunal que negavam o direito de arrozeiros
de permanecer na área indígena.
Em 12 de março último,
o ministro Carlos Ayres Britto negou pedido de liminar
em ação possessória interposta
por Paulo César Quartiero, chamado de líder
do movimento de resistência à desintrusão,
ponderando que ele havia adquirido sua fazenda em
2001, depois da demarcação da Terrra
Indígena, e, que, portanto, já sabia
que a terra era indígena. Nessa decisão
de 12/3, o ministro, que foi o relator da ação
cautelar julgada ontem, afirmava que "todo
esse panorama (...) desaconselha qualquer provimento
judicial que legitime, ainda que temporariamente,
a manutenção do autor no imóvel
(...) que, além do mais, poderia estimular
a resistência de outros ocupantes (...) e,
com isso, "colocar mais lenha na fogueira"
numa região já conflagrada em níveis
preocupantes".