11/04/2023
– Estudos revelam o impacto de sacolas plásticas, garrafas
PET, canudos e outros materiais poliméricos sobre organismos
e ecossistemas marinhos. Dos grandes acúmulos de lixo visíveis
na superfície ao leito mais profundo do oceano, o plástico
está por toda parte no ambiente marinho. Estima-se que há
acumulado entre 86 milhões e 150 milhões de toneladas
(t) do material, em seus inúmeros formatos, composições
e tamanhos, que podem demorar séculos para se decompor. Só
o Brasil lança potencialmente no ambiente 3,44 milhões
de t de sacolas plásticas, garrafas PET, canudos, embalagens
de xampu e isopor a cada ano, segundo um recém-divulgado
estudo do projeto Blue Keepers realizado pelo Pacto Global da Organização
das Nações Unidas (ONU) no Brasil. Como seu uso é
relativamente recente, popularizando-se apenas depois da Segunda
Guerra Mundial (1939-1945) e intensificando-se a partir dos anos
1970, muitos dos efeitos sobre organismos e ecossistemas ainda são
desconhecidos, em especial os das partículas menores. Mas
um robusto corpo de evidências aponta para consequências
importantes e graves.
Na Conferência do Oceano, promovida
pela ONU no fim de junho em Lisboa, a poluição marinha
por plástico ganhou destaque. Especialistas ressaltaram a
sua ligação com as mudanças climáticas,
já que 4,5% das emissões de carbono estão relacionadas
à produção e ao descarte de material polimérico
– por exemplo, como resultado da lenta decomposição
química do lixo despejado no mar. “Nossos oceanos se
encontram em um estado crítico e numerosas ações
são necessárias”, disse o secretário
de Estado da Suécia para a Mudança Climática
e o Ambiente, Anders Grönvall, na abertura de um dos eventos
da conferência que buscou tratar de inovações
para combater esse tipo de poluição. “Não
podemos ignorar que os plásticos são a maior parte
do lixo marinho. Oitenta por cento do lixo de plástico encontrado
no oceano tem origem terrestre e a previsão é de que
ele triplique até 2040 se não houver uma ação
significativa.”
A ONU declarou o período de
2021 a 2030 como a Década da Ciência Oceânica
para o Desenvolvimento Sustentável – ou a Década
do Oceano. Embora a poluição por plásticos
seja a mais preocupante, os ambientes marinhos também são
impactados por outras fontes como derramamento de petróleo,
despejo de rejeitos de mineração e lançamento
de esgoto doméstico e industrial sem tratamento.
No primeiro semestre deste ano, a
organização não governamental (ONG) internacional
WWF divulgou um relatório, elaborado pelo Instituto Alfred
Wegener – Centro Helmholtz para Pesquisa Polar e Marinha,
na Alemanha, com uma conclusão desalentadora. Mesmo se toda
a poluição por plástico cessasse hoje, o nível
de microplásticos (ver Pesquisa FAPESP no 281), aqueles que
não passam de 5 milímetros (mm) de tamanho, dobraria
até 2050 nos oceanos. Isso ocorreria porque os plásticos
já existentes nesse ambiente vão se partindo em fragmentos
cada vez menores, sem ter sua estrutura principal modificada. O
documento faz uma revisão de 2.592 estudos científicos
que tratam do impacto desse tipo de poluição sobre
as espécies, a biodiversidade e os ecossistemas marinhos.
Dezenas de artigos citados têm como autores pesquisadores
brasileiros.
“Em algumas épocas do
ano há mais microplástico do que larva de peixe em
suspensão na água junto com o plâncton”,
comenta o ecólogo marinho Mário Barletta, da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE), que assina pelo menos 10 trabalhos
mencionados pelo relatório. Especialista em ecologia de estuário,
Barletta investiga o ambiente aquático de transição
entre o rio Goiana, na porção norte de Pernambuco,
e o mar. “Tomo esse estuário como referência
para explicar o fenômeno para todos os estuários tropicais.
E olha que o local é muito bem preservado.”
Um de seus artigos, publicado em 2019
na revista Science of the Total Environment, descreve uma transferência
da contaminação por microplástico dentro da
teia trófica, a partir do material achado no estômago
de um robalo. Nos diferentes ecossistemas, a sequência de
organismos que servem de alimento para o outro (“quem come
quem”) é chamada de cadeia alimentar. A interação
das diversas cadeias alimentares de um ecossistema é chamada
de teia trófica.
“Encontramos uma presa muito
bem preservada no interior do peixe e, ao abrir essa presa, havia
microplástico. Esse achado sugere que os predadores de topo,
como os robalos e as pescadas, estão se contaminando não
apenas com o microplástico do ambiente, mas também
com as presas deles, de outros peixes, que já estão
contaminados. É algo muito mais sério.” Alguns
pesquisadores propõem usar determinados animais marinhos,
como mexilhões e ostras, como monitores ou bioindicadores
da qualidade do ambiente e dos possíveis riscos apresentados
pelo plástico à segurança alimentar humana.
“Esses animais são filtradores. Eles têm um órgão,
chamado brânquia, que funciona como uma rede que filtra a
água do mar para eles comerem o que tem ali. Acabam consumindo
o plástico e o material fica em seu interior por um período
de tempo. Podemos usar isso como um indicativo indireto do que há
no ambiente”, explica o biólogo Alexander Turra, do
Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo
(USP) e coordenador da cátedra Unesco para Sustentabilidade
do Oceano.
Um dos artigos no qual Turra é
coautor é de um trabalho feito em colaboração
internacional, com parceiros da China, da Noruega e de outros locais
para coletar moluscos bivalves na natureza e nos mercados a fim
de avaliá-los para esse possível uso duplo (como bioindicador
ambiental e na segurança alimentar). “Estamos trabalhando
em seis subprojetos em diferentes localidades, como no litoral do
Paraná e de São Paulo, na Austrália e nos oceanos
Atlântico e Pacífico.” Esse último é
executado em parceria com a iniciativa Voz dos Oceanos, da família
Schurmann, e tem apoio do Programa das Nações Unidas
para o Meio Ambiente (Pnuma). Apaixonados pelos mares, os Schurmann
são uma família de velejadores brasileiros que estão
em sua quarta volta ao redor do mundo a bordo de um veleiro.
Além da quantidade de itens,
os pesquisadores conseguem observar o tipo e a origem do material
no interior desses organismos. “No fundo da baía de
Paranaguá, no Paraná, encontramos muitos resíduos
derivados da degradação de pneus, que vêm dos
caminhões que passam pela Estrada da Graciosa, na serra do
Mar. Essa impressão digital dos tipos e das quantidades de
plástico varia de lugar para lugar”, explica Turra.
Em São Paulo, segundo ele, observam-se muito mais fibras
associadas a roupas sintéticas, que se desprendem durante
a lavagem e chegam no mar em razão da baixa cobertura de
coleta e ineficiência do tratamento de esgoto.
As zonas costeiras, no entanto, não
são as que apresentam a maior quantidade de partículas
microplásticas – embora sejam as que registram o maior
número de itens com mais de 5 mm, que, por algumas classificações,
já são chamados de macroplásticos. Segundo
os estudos citados pelo relatório da WWF, o leito oceânico
pode ter concentrações maiores até que as dos
grandes giros oceânicos, locais para onde as correntes costumam
concentrar o lixo, formando enormes manchas flutuantes. Quase nada
se sabe ainda sobre a distribuição e a concentração
de nanoplásticos, os fragmentos com dimensões inferiores
a 0,1 micrômetro (o equivalente a 1 milésimo de mm),
invisíveis a olho nu e capazes de entrar na corrente sanguínea.
Para plásticos um pouco maiores,
pesquisadores sugerem a observação de diversos animais
como indicadores da poluição. Em artigo publicado
em 2016 na revista Ecological Indicators, o biólogo Leonardo
Lopes Costa, da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf),
e colegas afirmam que os ninhos feitos por atobás-marrom
(Sula leucogaster) podem ter essa função. Sessenta
e um por cento dos ninhos analisados em dois conjuntos de ilhas
em Arraial do Cabo e em Macaé, no norte fluminense, tinham
em sua composição lixo que refletia a quantidade de
plástico e de material de pesca nas águas circunvizinhas.
“Sabemos que essas aves usam o plástico como material
de nidificação [para construção do ninho],
mas ainda desconhecemos as consequências disso para os filhotes
e para os adultos. Também não sabemos se serve para
outra finalidade, como a corte reprodutiva”, diz Costa.
O pesquisador da Uenf verificou ainda
outro uso inusitado do plástico por animais marinhos nas
praias da região Sudeste, ao constatar que caranguejos-fantasma
(Ocypode quadrata) colocam de propósito em suas tocas fragmentos
do material, em especial os mais maleáveis, como canudos,
cordas e esponjas. “Vimos que as taxas de ocupação
eram mais que o dobro nas tocas contendo lixo do que nas que não
continham. As sem lixo, em geral, já haviam sido abandonadas
pelos caranguejos. A nossa hipótese, que ainda precisa ser
testada, é de que o plástico seja usado como uma marca
de localização por esses invertebrados, uma vez que
alguns estudos sugerem que essa espécie tem certa fidelidade
por suas tocas. É um comportamento chamado de ‘homing’.”
Embora a interação das
espécies marinhas com o material plástico nem sempre
tenha uma consequência negativa, diversos pesquisadores investigam
os efeitos deletérios aos animais e organismos, como ferimentos
ou morte, redução da mobilidade, alteração
do consumo alimentar e da função celular. Um importante
efeito negativo do plástico ocorre via ingestão. O
material pode bloquear os sistemas digestórios, causar lesões
internas e criar uma falsa sensação de saciedade,
alterando ou reduzindo o padrão de consumo de alimentos –
e, com isso, causando um impacto negativo no crescimento, na resposta
imune, na fertilidade e na reprodução.
O médico veterinário
Gustavo Rodamilans de Macedo, doutor em ciência animal nos
trópicos e coordenador do Projeto Baleia Jubarte, na Bahia,
realizou necrópsias em 45 tartarugas marinhas encontradas
mortas em 2006 e 2007 no litoral norte baiano e publicou um artigo
descrevendo que em 60% delas foram encontrados resíduos de
lixo, principalmente de pesca.
“Em tartarugas, a ingestão
de resíduos, como saco plástico, tampinha de garrafa,
lacre ou pedaços de corda de pesca, pode causar compactação,
perfuração do estômago, úlceras e acúmulo
de gases. Esse é o tipo de interação que a
gente mais vê, em especial na tartaruga-verde [Chelonia mydas],
que se alimenta de algas. E tem muito lixo junto às algas”,
afirma o veterinário, que trabalhou durante mais de 15 anos
no Projeto Tamar, de conservação de tartarugas marinhas.
“Comprovei no meu estudo que é preciso analisar o trato
digestório todo para verificar a interação
do animal com o lixo. Estatisticamente, se eu pegar uma tartaruga
e só analisar o estômago e o esôfago, não
posso dizer nada. Na maioria das vezes, o plástico está
no intestino grosso.”
O biólogo Robson Henrique de
Carvalho, doutor em ecologia pela Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF), também publicou artigo sobre a ingestão
do lixo por tartarugas marinhas, só que no litoral fluminense.
Nesse estudo, 39% entre 23 animais de cinco espécies diferentes
achados em 2011 mortos ou prestes a morrer nas praias de Búzios
e Cabo Frio continham em seu interior lixo marinho.
Carvalho e colegas estimam que a ingestão
de resíduos seja a principal causa de mortalidade de muitas
tartarugas marinhas no país, mas afirmam que mais estudos
são necessários. “Vários pesquisadores,
institutos e até empresas que fazem monitoramento de praias
recorrem à metodologia de fazer a necrópsia do animal
e ver se há ou não lixo no trato digestório,
mas em geral esses dados não são publicados. Temos
muito mais dados, mas pouca publicação em revista
científica.”
Os pesquisadores ressaltam que é
importante contabilizar e analisar os dados sobre o lixo plástico
a fim de identificar a origem e as consequências do problema
e, assim, contribuir para a elaboração de políticas
públicas direcionadas à questão. “Esse
é um problema complexo, com várias fontes e muitos
caminhos complementares para agir”, aponta Turra. “Só
teremos sucesso se conseguirmos integrar os diferentes atores da
sociedade e criar as condições necessárias
que levem à transformação para um planeta sem
lixo no mar.”
De acordo com o pesquisador, embora
o Ministério do Meio Ambiente não esteja exercendo
o seu papel de coordenar essa frente no Brasil, alguns estados estão
preenchendo a lacuna. “São Paulo já internalizou
a temática de lixo no mar em políticas públicas
estaduais e trabalha para combater o problema”, destaca Turra.
Com a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do governo estadual
paulista, o Instituto Oceanográfico da USP, em parceria com
o Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio) e a embaixada
da Noruega, implementa o Plano Estratégico de Monitoramento
e Avaliação do Lixo no Mar (Pemalm). “Uma das
metas do plano é gerar indicadores para podermos compreender
o problema e monitorar os avanços. A outra é desenvolver
ações moldadas em função das diferentes
frentes de atuação que o Estado pode assumir.”
A equipe do Pemalm, cuja implementação
foi iniciada em São Paulo em janeiro deste ano, alimenta
a plataforma de indicadores com dados relacionados à geração
do lixo, gestão do resíduo, volume de reciclagem,
quantidade de lixo encontrado nas praias e em outros ambientes marinhos
e os efeitos econômicos e ecológicos disso. Outros
cinco estados brasileiros deverão adotar essa abordagem:
Amapá, Ceará, Bahia, Rio de Janeiro e Paraná.
Entre os ecossistemas-chave sob maior risco em razão dos
plásticos estão as áreas de recifes de corais
e os manguezais, alertam os pesquisadores. Ambos fornecem serviços
vitais para o planeta, entre eles a manutenção da
produtividade pesqueira e da biodiversidade. Artigo publicado em
2010 na revista Marine Pollution Bulletin traz os resultados de
uma pesquisa que avaliou oito áreas de manguezal em São
Vicente, na costa de São Paulo.
“Utilizamos para o lixo o mesmo
método de amostragem usado para medir os organismos vivos
e a densidade de plantas”, conta a bióloga Tânia
Marcia Costa, do Instituto de Biociências da Universidade
Estadual Paulista (Unesp), campus do Litoral Paulista. “Em
termos de densidade por metro quadrado, o plástico domina;
ou seja, ele ocupa mais espaço. Quando avaliamos o peso [dos
resíduos sólidos], constatamos uma diferença,
porque encontramos muita madeira. Isso se explica porque a região
ao redor das ilhas de manguezal está associada a uma área
grande de favela com palafitas de madeira.” Como a madeira
se degrada rapidamente, seu impacto no ambiente não é
tão grande, afirma o estudo.
Costa ressalta que é importante
entender o papel de cada poluente sobre os ecossistemas. “As
regiões de manguezal, que são sumidouros de carbono,
têm como característica a deposição constante
de sedimentos e os animais se alimentam do que está depositado
ali. Com isso, o microplástico se torna um problema muito
maior, apesar de o macroplástico também causar preocupação.”
O relatório da WWF destaca
que a questão do plástico no mar não deve ser
considerada de forma isolada. Outras ameaças causadas pelo
homem se somam ao lixo dos polímeros, como o aquecimento
das águas, a pesca excessiva, a acidificação
dos oceanos, a destruição e fragmentação
de hábitats, a navegação e a poluição
sonora submarina e a causada por outros poluentes químicos.
A abordagem mais importante, sustenta o documento, bem como os pesquisadores
brasileiros entrevistados, é evitar o lixo plástico
no ambiente, reduzindo a produção do material. Fonte:
Revista FAPESP.
Projetos
1. Promovendo o planejamento espacial e conservação
de praias por meio de uma abordagem ecossistêmica (nº
18/19776-2); Modalidade Programa Biota; Pesquisador responsável
Alexander Turra (USP); Investimento R$ 243.097,61.
2. Aprimorando o biomonitoramento
de microplásticos em praias por meio de abordagens de campo
e de laboratório: Efeitos da variabilidade de curto prazo
em designs de programas de monitoramento (nº 22/01345-02);
Modalidade Bolsa de Doutorado no Exterior; Pesquisador responsável
Alexander Turra (USP); Bolsista Marília Nagata Ragagnin;
Investimento R$ 118.482,42.
Artigos científicos
FERREIRA, G. V. B. et al. Use of estuarine resources by top predator
fishes. How do ecological patterns affect rates of contamination
by microplastics? Science of The Total Environment. v. 655, p. 292-304.
10 mar. 2019.
LI, J. et al. Using mussel as a global
bioindicator of coastal microplastic pollution. Environmental Pollution.
v. 244, p. 522-33. jan. 2019.
TAVARES, D. C. et al. Nests of the
brown booby (Sula leucogaster) as a potential indicator of tropical
ocean pollution by marine debris. Ecological Indicators. v. 70,
p. 10-4. nov. 2016.
COSTA, L. L. et al. Evidence of marine
debris usage by the ghost crab Ocypode quadrata (Fabricius, 1787).
Marine Pollution Bulletin. v. 128, p. 438-45. mar. 2018.
MACEDO, G. R. et al. Anthropogenic
debris ingestion by sea turtles in the northern coast of Bahia,
Brazil. Ciência Rural. p. 1938-41. nov. 2011.
DE CARVALHO, R. H. et al. Marine debris
ingestion by sea turtles (Testudines) on the Brazilian coast: An
underestimated threat? Marine Pollution Bulletin. v. 101, p. 746-9.
30 dez. 2015.
CORDEIRO, C. A. et al. Evaluation of solid residues removed from
a mangrove swamp in the Sao Vicente Estuary, SP, Brazil. Marine
Pollution Bulletin. v. 60, p. 1762-7. 2010.
*Este artigo foi republicado do site
Revista Pesquisa Fapesp, sob uma licença Creative Commons
CC-BY-NC-ND. Veja
o artigo original.
Da Redação, com informações
da Revista FAPESP
Foto: Reprodução/Pixabay
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